Descrição de chapéu Melanoma

Para paciente com melanoma, visão turva e dor de cabeça eram da gravidez

Doença atingiu cérebro e pulmão, e contadora recorreu à ajuda de redes solidárias para custear a medicação

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Daniela Pintão Etel Frota
São Paulo

Os sintomas de Jacqueline Christine da Silva, 34, começaram no final da gravidez. Tinha dor de cabeça, enjoo, visão turva, que atribuía à gestação. Em outubro de 2017, sofrera um aborto espontâneo no final do primeiro trimestre, mas em novembro de 2018 chegava ao termo da desejada gravidez.

Após o parto, os sintomas se intensificaram. Foi algumas vezes ao posto de saúde de sua cidade, Presidente Olegário (MG), que tem pouco mais de 20 mil habitantes e fica a 430 km de Belo Horizonte. O diagnóstico inicial foi de sinusite ou enxaqueca, com a hipótese de que a percepção dolorosa pudesse estar agravada por uma depressão pós-parto.

Como a dor só piorava, Jacqueline marcou consulta particular com um neurologista em Patos de Minas (MG), polo regional a 30 km. Saiu com a prescrição de um remédio para dor e observação do quadro por uma semana.

Jacqueline Cristine da Silva, paciente do Hospital de Amor de Barretos, SP - Ricardo Benichio/Folhapress

A dor continuou, e nos dias subsequentes ela teve um episódio alucinatório. “Eu achava que estava amamentando minha filha, ou que ela estava caindo do berço”, relembra. Foi levada na madrugada ao pronto-socorro; saiu com um pedido de tomografia na UBS (Unidade Básica de Saúde).

No dia seguinte, já com o resultado de um tumor no cérebro, voltou ao neurologista particular. O médico indicou cirurgia imediata: o aspecto sugeria malignidade.

Jacqueline não tem plano de saúde e teria que conseguir uma vaga pelo SUS. Ajudada por Ideliza Pinheiro, 45, filha dos donos da empresa em que trabalha, ela encaminhou sua documentação por serviço online para a Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, em Brasília (DF). A rede faz parte do SUS e tem a neurocirurgia como uma de suas especialidades.

Dois meses após o nascimento da filha, era submetida à retirada do tumor. O avanço da investigação encontrou também uma metástase pulmonar. O tumor de origem não foi identificado.

“Minha maior preocupação era minha filha também estar doente, mas os médicos me tranquilizaram”, lembra Jacqueline. A propagação das metástases de um melanoma por via transplacentária pode acontecer, mas é um evento raro.

“Não existe protocolo definido quando o diagnóstico da mãe é feito com a criança já com alguns meses. Se o bebê não apresenta sinais anormais, o que se faz é um acompanhamento clínico pediátrico cuidadoso, levando sempre em conta o histórico da mãe”, diz Vicente Odone, oncologista pediátrico do Albert Einstein e professor da USP.

Novamente ajudada, desta vez pela Associação Olegarense de Apoio à Pessoa com Câncer, Jacqueline foi encaminhada ao Hospital de Câncer de Barretos (interior de SP) e submetida a sessões de radioterapia para controle da metástase pulmonar.

Revelou-se também um resultado positivo para a mutação do gene Braf, o que, em tese, ampliava suas opções terapêuticas: além da imunoterapia com nivolumabe ou pembrolizumabe, havia a possibilidade de aplicação da terapia-alvo, que ataca especificamente as moléculas das células cancerosas.

Nenhum desses tratamentos, no entanto, estava disponível no SUS, que fornecia apenas o interferon e drogas quimioterápicas, principalmente a dacarbazina.

“Estas drogas têm alta toxicidade e baixa eficácia para o melanoma, só 20% dos pacientes apresentam resposta positiva com elas”, declara o médico Renato Santos, cirurgião oncológico e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Com os imunoterápicos, a taxa atual de sucesso gira em torno de 60%, e a resposta é muito mais duradoura.”

Munida do laudo médico, Jacqueline entrou com ação judicial contra o estado para receber um dos dois imunoterápicos indicados ao seu caso. Sua situação grave e urgente não podia, no entanto, esperar o trâmite legal. Do quarto de seu hotel em Barretos, contou sua história em uma rede social e pediu ajuda para o tratamento.

“Onde eu moro todo mundo se conhece, e os quatro cantos da cidade se mobilizaram em rifas, bazares, vaquinhas”, conta. Foi através dessa mobilização, ampliada pela rede social, que conseguiu iniciar a terapia com nivolumabe em maio de 2019.

Já em tratamento, conheceu a Associação dos Amigos e Usuários de Medicamentos Excepcionais, de Belo Horizonte (MG), que, além de oferecer orientação jurídica, doou algumas doses da medicação. “Sou muito grata a eles, me tiraram do sufoco.”

Após três meses, os tumores entraram em remissão. A sentença judicial favorável saiu em novembro de 2019, seis meses depois de Jacqueline ter começado a comprar a droga. O Estado liberou o pembrolizumabe, que deve ser mantido por dois anos.

Em 8 de julho, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) do Ministério da Saúde recomendou a incorporação de dois imunoterápicos antimelanoma —nivolumabe e pembrolizumabe— pela rede pública de saúde. Cerca de um mês depois, em 4 de agosto, uma portaria do ministério informava que o prazo máximo para oferecer a droga no SUS era de 180 dias.

Espera-se, portanto, que a partir de fevereiro de 2021 cesse a necessidade de deslocamento até Patos de Minas, onde a cada três semanas o marido de Jaqueline busca o medicamento que ela leva em mãos para o hospital de Barretos. Espera-se, mas não é certo, pois trâmites e burocracias não raro têm retardado, para muito além do prazo definido em lei, o uso de drogas incorporadas.

Antes da pandemia, Jacqueline costumava ir e voltar a Barretos no mesmo dia com a van da prefeitura, num périplo que pode tomar até 12 horas de estrada. Com a emergência da Covid-19, o marido a tem levado de carro. “A Assoapac nos dá uma ajuda com o combustível, mas a situação atual alterou o valor necessário, porque as doações para a associação também diminuíram”, conta.

Enquanto durar a pandemia, o casal terá que pernoitar em Barretos. O hospital teve que reduzir o número de atendimentos diários para evitar aglomerações; a consulta médica e a infusão passaram a acontecer em dias subsequentes. Deu-se a entrada em cena de mais uma rede de solidariedade, a Associação Amigos do Bem de Presidente Olegário que, com subvenção da prefeitura, mantém uma casa de apoio em Barretos.

“Fiquei com uns pontos cegos na visão, como sequela da cirurgia”, conta Jacqueline. Isso, no entanto, não a incapacita para o dia a dia, que gira principalmente em torno de Nicoly, o bebê que ilustra suas páginas nas redes sociais. Na apresentação, uma frase resume seu lema: “A regra agora é viver um dia de cada vez.”

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