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'Treinando minha substituta': como uma funcionária de call center encara a IA

Enquanto para alguns os chatbots são bombas-relógio que detonarão seu trabalho, para outros a ameaça já existe

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Emma Goldberg
Pascagoula (EUA) | The New York Times

"Essa história de IA [inteligência artificial] está virando uma coisa muito louca."

As vozes de Charlamagne tha God, apresentador do programa de rádio "The Breakfast Club", e suas convidadas Mandii B e WeezyWTF enchiam o carro de Ylonda Sherrod no caminho dela para o trabalho, descendo a rodovia Interstate 10 do Mississippi. O tema sendo discutido esse dia em seu programa favorito era a inteligência artificial —especificamente, um sample do rapper Biggie gerado por IA.

"Sonicamente falando, é bacana", disse Charlamagne tha God. "Mas não tem alma."

WeezyWTF respondeu: "Já perguntaram se eu substituiria pessoas que trabalham para mim por IA. Eu digo ‘nem pensar, cara’."

Sherrod concordou enfaticamente. Ela chegou ao call center da AT&T onde trabalha sentindo-se perturbada. Reproduziu para uma colega o trecho do programa onde se falou sobre IA.

"Sim, é uma loucura", respondeu sua amiga. "Como você acha que vai ficar para nós?"

The AT&T call center where
Call center da AT&T onde Ylonda Sherrod trabalha - Bryan Tarnowsky - 3.jul.2023/The New York Times

Como tantos milhões de trabalhadores americanos em milhões de locais de trabalho, os 230 funcionários de atendimento ao consumidor do call center da AT&T em Ocean Springs, Mississippi, observaram a IA chegar rápida e certeira nos últimos 12 meses, como um gerente novo assumindo seu cargo e fazendo sua presença ser sentida.

De repente os funcionários não estavam mais fazendo suas próprias anotações nas ligações com consumidores. Em vez disso, uma ferramenta de IA gerava uma transcrição que seus gerentes consultariam mais tarde. Tecnologia de IA estava oferecendo sugestões sobre o que dizer aos clientes. E estes estavam passando tempo ao telefone falando com sistemas automatizados, que resolviam perguntas simples e passavam as mais complicadas a funcionários humanos.

Sherrod, 38, encarou a nova tecnologia com um misto de irritação e medo. "Sempre havia uma pergunta na minha cabeça: será que estou treinando minha substituta?"

Vice-presidente da seção local do sindicato que representa os funcionários de call centers, Communication Workers of America, Sherrod começou a fazer perguntas aos gerentes da AT&T. "Se não falarmos sobre isso, pode acabar prejudicando minha família", ela comentou. "Será que vou ficar desempregada?"

Nos últimos meses o chatbot de IA ChatGPT penetrou em tribunais, salas de aula, hospitais e inúmeros outros locais de trabalho. Chegou acompanhado de especulação sobre o impacto da IA sobre os empregos. Muitas pessoas encaram a IA como uma bomba-relógio ativada e que vai certamente detonar seu trabalho. Mas para algumas, como Sherrod, a ameaça da IA não é algo abstrato: elas já estão sentindo seus efeitos.

Ylonda Sherrod
Ylonda Sherrod, vice-presidente da seção local do sindicato que representa funcionários de call centers - Bryan Tarnowsky - 3.jul.2023/The New York Times

Quando a automação engole empregos, ela frequentemente começa pelos empregos no setor de atendimento ao consumidor, dos quais há cerca de 3 milhões nos Estados Unidos. A automação tende a tomar o lugar dos humanos em tarefas que se repetem. O atendimento ao consumidor, que já uma área em que muitos empregos são terceirizados para fora do país, pode ser um candidato perfeito.

A maioria dos call centers americanos americanos pesquisados este ano informou que os empregadores estão automatizando parte de seu trabalho, segundo pesquisa feita com 2.000 pessoas por pesquisadores da Cornell. Quase dois terços dos entrevistados disseram que parece um pouco ou muito provável que o uso crescente de robôs resulte em demissões nos próximos dois anos.

Executivos de tecnologia observam que o medo da automação é algo que começou há séculos –desde a época dos luddistas, que no início do século 19 destruíram e incendiaram máquinas têxteis--, mas que a realidade histórica é que a automação geralmente cria mais empregos do que os que elimina.

Só que essa geração de empregos é gradual. Os novos empregos criados pela tecnologia, como na área de engenharia, frequentemente demandam habilidades complexas dos profissionais. Isso pode criar um vazio para trabalhadores como Sherrod, que encontrou na AT&T algo que lhe pareceu uma oportunidade e ouro: um emprego que paga US$ 21,87 por hora e até US$ 3.000 mensais em comissões, além de lhe garantir convênio médico e cinco semanas anuais de férias –tudo isso sem a exigência de diploma universitário. (Menos de 5% dos empregos na AT&T requerem formação universitária.)

Para Sherrod, o trabalho de atendimento ao consumidor significou que alguém como ela –uma jovem negra criada por sua avó numa cidadezinha pequena do Mississippi—pôde ganhar a vida "muito bem".

"Estamos rompendo com maldições que vêm de gerações", disse Sherrod.

Na casa térrea em Pascagoula, Mississippi, onde ela passou sua infância, o dinheiro sempre foi pouco. Sua mãe morreu quando ela tinha 5 anos. Sua avó, que a criou, não trabalhava. Sherrod se recorda de receber vales-refeição que levava à padaria da esquina sempre que possível. Ela se recorda de como era o Natal. A família tinha uma árvore de plástico e tentava enfeitá-la, mas geralmente não havia dinheiro para presentes.

Para os alunos do colégio de ensino médio da cidade, as oportunidades de emprego eram limitadas. Muitos foram para o estaleiro Ingalls Shipbuilding, fazer trabalho estafante sob o sol escaldante do Mississippi. Outros buscaram trabalho na refinaria local da Chevron.

"Parecia que eu não teria outra opção senão encarar um trabalho pesado para ganhar a vida", disse Sherrod. "Que meu estilo de vida nunca poderia ser algo agradável, que me desse prazer."

Quando ela tinha 16 anos, trabalhou na KFC, ganhando US$ 6,50 a hora. Depois de concluir o ensino médio e abandonar a faculdade pública, mudou-se para Biloxi, Mississippi, para ser camareira no hotel de 32 andares JP Casino, onde sua irmã ainda trabalha.

Depois de alguns meses trabalhando no hotel, Sherrod estava sentindo os efeitos sobre seu corpo. Ela tinha dor constante nos joelhos e nas costas. Tinha que faxinar pelo menos 16 quartos por dia, tirando cabelos dos ralos de banheiros e trocando lençóis sujos.

Quando uma amiga lhe falou das vagas na AT&T, ela achou a oportunidade tão boa que parecia impossível. O call center tinha ar condicionado. Ela poderia passar o dia todo sentada, descansando os joelhos. Sherrod fez os testes para o call center duas vezes e na segunda vez, em 2006, recebeu uma oferta de trabalho, com remuneração inicial de US$ 9,41 por hora, contra US$ 7,75 no hotel do cassino.

"Seu maior pesadelo"

Nesta primavera, legisladores em Washington convocaram os criadores de ferramentas de IA para começar a discutir os riscos colocados pelos produtos que eles lançaram.

"Quero lhe perguntar qual é seu maior pesadelo", o senador republicano Richard Blumenthal, democrata do Connecticut, perguntou ao CEO da OpenAI, Sam Altman, depois de revelar que seu próprio maior receio era a perda de empregos.

"Que haverá um impacto sobre os empregos", respondeu Altman, cuja empresa desenvolveu o ChatGPT.

Essa realidade já ficou clara. A empresa de telecomunicações britânica BT Group anunciou em maio que até 2030, graças ao uso crescente de IA, vai eliminar até 55 mil vagas de trabalho. O CEO da IBM disse que a IA vai afetar certos trabalhos administrativos na empresa, eliminando a necessidade de até 30% de alguns dos cargos, mas ao mesmpo tempo criando outros.

A AT&T começou a integrar a IA em muitas partes de seu trabalho de atendimento ao consumidor, incluindo o encaminhamento de consumidores a agentes, a oferta de sugestões de soluções técnicas durante as ligações com consumidores e a produção de transcrições das conversas.

A empresa disse que a intenção é criar uma experiência melhor para os consumidores e os funcionários. "Queremos usar a IA para assistir nossos funcionários e aumentar seu raio de ação", disse Nicole Rafferty, que comanda a operação de atendimento ao consumidor da AT&T e trabalha com funcionários em todo o país.

"Sempre vamos precisar de interação entre humanos para resolver situações complexas dos consumidores", ela acrescentou. "É por isso que estamos tão interessados em construir IA que dê suporte a nossos funcionários."

Economistas que estudam a inteligência artificial dizem que o mais provável é que ela não cause demissões em grande escala de uma hora para outra. Em vez disso, ela deve gradualmente eliminar a necessidade de os humanos realizarem certas tarefas –e deixar o trabalho que resta mais complexo.

Sherrod já está sentindo na pele que seu trabalho está ficando mais difícil com a IA. A tecnologia automatizada tem dificuldade em entender seu sotaque arrastado, e por isso as transcrições das chamadas que ela atende estão sempre cheias de erros. Depois que a tecnologia sair da fase de piloto, ela não poderá mais fazer correções. (A AT&T disse que está aprimorando os produtos de IA que usa para evitar esse tipo de erro.)

Para Sherrod, parece provável que em determinado momento, à medida que o trabalho for ficando mais eficiente, a empresa não precise mais de tantos humanos atendendo a ligações em seus call centers.

E ela se pergunta: será que a empresa não confia nela? Por dois anos consecutivos ela recebeu o prêmio máximo da AT&T, Summit Award, colocando-a entre os 3% melhores representantes de atendimento ao consumidor da empresa em todo o país. Seu nome era projetado na parede do call center.

"Deram um saquinho de presentes a todo o mundo, com um troféu", ela recordou. "Aquilo significou muito para mim."

"Veja como é minha vida"

Com companhias como a AT&T aderindo à IA, especialistas vêm aventando propostas para proteger os trabalhadores. Há a possibilidade de programas de formação para ajudar as pessoas a fazer a transição para novos empregos, ou então um imposto de deslocamento que seria cobrado de empresas quando o emprego de um funcionário é automatizado, mas a pessoa não é retreinada para outra função.

Os sindicatos estão mergulhando de cabeça nessas batalhas. Em Hollywood, os sindicatos de atores e de roteiristas de televisão vêm lutando para limitar o uso de IA na redação de roteiros e na produção.

Apenas 6% dos trabalhadores no setor privado americano são representados por sindicatos. Sherrod é uma delas, e ela começou a brigar com sua empresa para conseguir mais informação sobre seus planos de adoção de IA.

Durante anos, as reivindicações que ela fez em nome do sindicato foram coisas de rotina. Como chefe de comissão de fábrica, ela geralmente pedia à empresa para reduzir as penalidades impostas a colegas que se metiam em apuros.

Mas este ano, pela primeira vez, ela sente que está encarando uma luta que vai afetar trabalhadores muito além da AT&T. Recentemente ela pediu a seu sindicato que crie uma força-tarefa para enfocar a IA.

No final de maio Sherrod foi convidada pelo sindicato nacional, Communication Workers of America, para viajar a Washington, onde ela e dezenas de outros trabalhadores se reuniram com o Escritório de Engajamento Público da Casa Branca para compartilhar suas experiências com a IA.

Um trabalhador em um armazém contou sobre ser monitorado com IA que acompanha a rapidez com que ele move pacotes de um lugar a outro, criando pressão para ele deixar de tirar seus intervalos. Um motorista de entregas contou que tecnologias de vigilância automatizadas estão sendo usadas para monitorar os funcionários e procurar potenciais ações disciplinares, embora seus registros não sejam confiáveis. Sherrod descreveu como a IA em seu call center cria resumos imprecisos de seu trabalho.

"O trabalho no call center mudou minha vida", ela disse. "Veja como é minha vida. Será que vão me tirar isso tudo?"

Tradução de Clara Allain

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