Broche inteligente com ar de ficção científica é aposta para substituir smartphone

'Humane', fundada por ex-funcionários da Apple, quer diminuir dependência de telas com inteligência artificial

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Erin Griffith Tripp Mickle
São Francisco (Califórnia) | The New York Times

Dentro de um antigo estábulo de cavalos no bairro de SoMa, em São Francisco, uma onda de sons suaves emergiu de pequenos dispositivos piscantes presos como broches no peito dos funcionários de uma startup chamada Humane.

Faltavam apenas algumas semanas para que o gadget da startup, o Ai Pin, fosse revelado ao mundo —o resultado de cinco anos, US$ 240 milhões (R$ 1,2 bi) em financiamento, 25 patentes, uma constante onda de hype e parcerias com as principais empresas de tecnologia, incluindo OpenAI, Microsoft e Salesforce.

A missão deles? Nada menos do que libertar o mundo do vício em smartphones. A solução? Mais tecnologia.

Projeção em mão simula tela de celular, mostrando horário e aviso de nova mensagem
Broche Ai Pin, utilizado na roupa, projeta visor na mão de usuário e propõe substituir telas de smartphone - Kelsey McClellan/The New York Times

Imran Chaudhri e Bethany Bongiorno, marido e mulher e fundadores da Humane, imaginam um futuro com menos dependência das telas que a antiga empregadora deles, a Apple, tornou onipresentes.

A inteligência artificial "pode criar uma experiência que permite ao computador essencialmente ficar em segundo plano", disse Chaudhri.

Eles estão anunciando o broche como o primeiro dispositivo artificialmente inteligente. Ele pode ser controlado por comandos de voz, toque ou projeção a laser de uma tela na palma da mão. Em um instante, o assistente virtual do dispositivo pode enviar uma mensagem de texto, tocar uma música, tirar uma foto, fazer uma ligação ou traduzir uma conversa em tempo real para outro idioma.

O sistema conta com a IA para ajudar a responder perguntas ("Qual é a melhor maneira de encher a máquina de lavar louças?") e pode resumir mensagens recebidas com o simples comando "Me atualize".

Broche preto em formato quadrado, com arestas circulares, sobre camisa de homem
Funcionário da Humane usa o broche Ai Pin - Kelsey McClellan/The New York Times

A tecnologia é um avanço em relação a Siri, Alexa e Google Assistente. Ela pode acompanhar uma conversa de uma pergunta para a próxima, sem precisar de contexto explícito. Também é capaz de editar uma única palavra em uma mensagem ditada, em vez de exigir que o usuário corrija um erro repetindo o texto do início ao fim, como outros sistemas fazem. E tudo isso em um dispositivo que lembra os distintivos usados em "Star Trek".

Para os especialistas em tecnologia, é um projeto ambicioso. Para os leigos, é uma fantasia de ficção científica.

Na Humane, há uma grande ansiedade em relação às próximas semanas. A indústria de tecnologia tem um grande cemitério de produtos vestíveis ("wearables") que não conseguiram se popularizar. A Humane começará a enviar os broches no próximo ano. Eles esperam vender cerca de 100 mil broches, que custarão nos EUA US$ 699 (R$ 3.430) e exigirão uma assinatura mensal de US$ 24 (R$ 118), no primeiro ano. (A Apple vendeu 381 mil iPods no ano seguinte ao seu lançamento em 2001.)

Para que a startup tenha sucesso, as pessoas precisarão aprender um novo sistema operacional chamado Cosmos e estar dispostas a obter novos números de telefone para o dispositivo. (O broche vem com seu próprio plano de internet sem fio.)

Elas precisarão ditar mensagens em vez de digitá-las e trocar uma câmera que dá zoom por fotos de ângulo aberto. Elas precisarão ter paciência, pois certos recursos, como reconhecimento de objetos e vídeos, não estarão disponíveis inicialmente. E o broche às vezes pode apresentar falhas, como ocorreu durante algumas demonstrações da empresa para o New York Times.

Sam Altman, CEO da OpenAI, disse em uma entrevista que espera que a inteligência artificial seja "uma parte enorme" de como interagimos com os computadores. Ele investiu na Humane, assim como em outra empresa de IA, a Rewind AI, que planeja criar um colar que gravará o que as pessoas dizem e ouvem. Ele também discutiu a possibilidade de se unir a Jony Ive, ex-chefe de design da Apple, para criar um dispositivo de IA com uma ambição semelhante à da Humane.

A Humane tem a vantagem de ser o primeiro desses dispositivos focados em IA a se tornar disponível, mas Altman disse que isso não garante o sucesso.

"Isso dependerá dos clientes decidirem", disse ele. "Talvez seja um passo grande demais, ou talvez as pessoas pensem: 'Isso é muito melhor do que meu telefone'".

"Muitas tecnologias que pareciam ser uma aposta certa acabam sendo vendidas com 90% de desconto na Best Buy", acrescentou.

Culpa do iPhone

Bethany Bongiorno e Imran Chaudhri, casal de fundadores da Humane - Kelsey McClellan/The New York Times

Bongiorno, 40, e Chaudhri, 50, têm um casamento de contrastes. Ele raspa a cabeça e fala com a voz suave e calma de um iogue. Ela joga seu longo cabelo loiro sobre um ombro e tem o entusiasmo de uma capitã de equipe. Ambos se vestem de preto, como Steve Jobs.

Eles se conheceram na Apple em 2008. Chaudhri estava trabalhando na interface humana, definindo os gestos e movimentos que controlam os iPhones. Bongiorno era gerente de programa para o iPhone e iPad. Eles trabalharam juntos até deixarem a Apple no final de 2016.

Um monge budista chamado Brother Spirit (irmão espírito) os levou à Humane. Chaudhri e Bongiorno haviam desenvolvido conceitos para dois produtos de IA: um dispositivo de saúde feminina e o broche. Brother Spirit, que eles conheceram por meio de seu acupunturista, recomendou que compartilhassem as ideias com seu amigo Marc Benioff, fundador da Salesforce.

Sentados sob uma palmeira em um penhasco acima do oceano na casa havaiana de Benioff em 2018, eles explicaram ambos os dispositivos. "Este", disse Benioff, apontando para o broche Ai Pin, enquanto golfinhos saltavam nas ondas abaixo, "será enorme".

"Vai ser uma empresa enorme", acrescentou. O objetivo da Humane era replicar a utilidade do iPhone sem nenhum dos componentes que nos tornam viciados: a sensação de dopamina ao arrastar para atualizar um feed do Facebook ou deslizar para ver um novo vídeo do TikTok.

Eles experimentaram em segredo componentes de hardware e construíram um assistente virtual, como a Siri ou a Alexa, trabalhando com modelos de linguagem personalizados baseados em parte no oferecido pela OpenAI.

O elemento mais futurista do dispositivo —o laser que projeta um menu de texto na mão— começou dentro de uma caixa do tamanho de uma caixa de fósforos. Levou três anos para miniaturizá-lo a ponto de ser menor do que um suporte de bola de golfe.

A Humane estabeleceu uma cultura empresarial inspirada na Apple, incluindo seu caráter sigiloso. Durante a fase de experimentação, a startup criou intriga ao anunciar investidores de alto perfil como Altman e fazer declarações públicas grandiosas —embora vagas— sobre construir "a próxima mudança [na relação] entre humanos e computadores".

A empresa também manteve a obsessão da Apple pelos detalhes de design, desde os cantos arredondados do dispositivo até a embalagem branca compostável e os banheiros no estilo japonês no escritório da empresa.

Mas a Humane se afastou da cultura rígida e exigente da Apple de algumas maneiras. A empresa incentivava os membros da equipe a trabalhar juntos, questionar planos e se manifestar.

José Benitez Cong, um executivo de longa data da Apple que se considerava aposentado, juntou-se à Humane, em parte, para se redimir. Benitez Cong disse que estava "enojado" com o que o iPhone havia feito à sociedade, observando que seu filho conseguia imitar o movimento de deslizar com 1 ano de idade.

"Poderia ser algo que me ajudaria a superar minha culpa por trabalhar no iPhone", disse Benitez Cong.

Segurando a luz

Um som assustador encheu a sala, e duas dúzias de funcionários da Humane, sentados ao redor de uma longa mesa branca, concentraram-se no som. Era pouco antes do lançamento do Ai Pin, e eles estavam avaliando seus toques e bipes. O alto-falante "personic" do broche (uma mistura de "personal", pessoal, e "sonic", sonoro) é fundamental, já que muitos dos recursos dependem dos toques verbais e sonoros.

Chaudhri elogiou a "assertividade" de um dos sons, e Bongiorno elogiou os sons "mais físicos" do laser do broche. "Parece que você está realmente segurando a luz", ela maravilhou-se.

Menos tranquilizador aquele som de assobio que toca ao enviar uma mensagem de texto. "Parece sombrio", disse Bongiorno. Outros ao redor da mesa disseram que parecia um fantasma, ou como se você tivesse cometido um erro. Alguém achou que era uma piada de Halloween. Bongiorno queria que o som ao enviar uma mensagem de texto fosse tão satisfatório quanto o som da lixeira em um dos sistemas operacionais antigos da Apple.

O dispositivo está chegando em um momento em que a empolgação e o ceticismo em relação à IA atingem novos patamares a cada semana.

Pesquisadores do setor estão alertando para o risco existencial da tecnologia, e os reguladores estão ansiosos para reprimi-la.

Mas investidores estão despejando dinheiro em startups de IA. Antes mesmo de a Humane lançar um produto, seus apoiadores já a avaliaram em US$ 850 milhões (R$ 4,2 bilhões).

A empresa tem tentado promover uma mensagem de confiança e transparência, apesar de passar a maior parte de sua existência trabalhando em segredo. Os Ai Pins da Humane têm o que a empresa chama de "luz de confiança", que pisca quando o dispositivo está gravando. (O usuário deve tocar no broche para "acordá-lo".) A Humane afirmou que não vende dados do usuário para terceiros nem os utiliza no treinamento de seus modelos de IA.

Nos meses que antecederam sua apresentação, a Humane alimentou expectativas. Em abril, Chaudhri mostrou o projetor a laser do broche durante uma palestra do TED. (Mais tarde, as pessoas o acusaram de falsificar a demonstração, mas ele garantiu que era real.)

Em setembro, lembrando o lançamento do Apple Watch voltado para o mundo da moda, a supermodelo Naomi Campbell usou o broche da Humane —quase imperceptível— em um blazer cinza da Coperni na passarela da Paris Fashion Week.

App store de IA

Os apoiadores da Humane têm uma maneira fácil de dispersar o ceticismo —eles invocam o primeiro iPod. Aquele dispositivo desajeitado tinha apenas uma função, tocar músicas, mas lançou as bases para a verdadeira revolução, os smartphones. Da mesma forma, a Humane imagina um ecossistema inteiro de empresas construindo recursos para seu sistema operacional —uma versão de IA da App Store da Apple.

Mas primeiro, uvas passas. Em uma demonstração no escritório da Humane de um recurso que será lançado em uma versão futura do produto, um designer de software pegou um cookie com gotas de chocolate e tocou o broche em seu peito esquerdo. Ao ligar com um bip, ele perguntou: "Quanta açúcar tem nisso?"

"Desculpe, não consegui encontrar a quantidade de açúcar em um cookie de aveia com passas", disse o assistente virtual.

Chaudhri ignorou o erro. "Para ser justo, eu tenho dificuldade em diferenciar um cookie com gotas de chocolate de um cookie de aveia com passas."

A ambição da Humane de romper com o smartphone é audaciosa, criativa e até irracional; o tipo de coisa pela qual o Vale do Silício é conhecido, mas, os críticos lamentam, nos últimos anos tem se transformado em frivolidades incrementais, como aplicativos de selfie e caminhões de pizza robô.

Mas mesmo depois de meses usando seus Ai Pins o dia todo, os fundadores da Humane não conseguem se desligar completamente de suas telas.

"Estamos usando menos nossos smartphones?", perguntou Chaudhri. "Estamos usando de forma diferente."

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