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Paula Chimenti

Now and Then; algo em comum entre os Beatles e os alunos que criaram nudes

Nossa fome empreendedora jamais foi refreada pela consciência de que iríamos longe demais

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Paula Chimenti

Professora do Coppead-UFRJ, onde lidera o Centro de Estudos em Estratégia e Inovação

Acordei hoje diante de dois eventos aparentemente díspares: os alunos que criaram e compartilharam nudes de suas colegas e o lançamento da música inédita dos Beatles.

Um elemento comum: tecnologia. A onipresente inteligência artificial, que cria e destrói, encanta e apavora. Não é isso... é o que fazemos disso. Indo além da análise rasa dos garotos que destroem e gênios que criam, vamos refletir sobre como a IA nos modifica e desafia.

Foto da banda Beatles - AFP

Como disse Nilton Bonder, desde Adão e Eva traições se impõem sobre tradições e desafiamos o status quo em busca de crescimento. Nossa fome empreendedora jamais foi refreada pela consciência de que iríamos longe demais.

Não fizemos isso quando descobrimos ferramentas que os levaram ao topo da cadeia alimentar ou quando criamos a bomba atômica. Uma vez ouvi de um editor que falava sobre a chegada da Amazon no Brasil: "eu queria que o ebook fosse desinventado". Apesar de compreensível, não é viável.

Dado que nada será desinventado, vamos aos impactos, começando pelo Impacto na Verdade. Chamamos de "era da pós-verdade" o que estamos vivendo, como se os fatos fossem relativos.

A ciência ajuda e atrapalha as conclusões porque, enquanto testa hipóteses com o intuito de controlar e prever, também se questiona. O cientista busca a verdade e questiona o que está estabelecido e isso não é paradoxal.

A verdade é socialmente construída pois nossos sentidos e lógica oferecem meios limitados de compreender a realidade. Isso não quer dizer que desistimos de buscar. Há uma distinção importante entre limites científicos na busca do conhecimento e a manipulação de fatos em benefício próprio.

O segundo aspecto é o Impacto na Visão. A tecnologia permitiu que nos aprisionássemos deliberadamente em bolhas, repercutindo o que acontece em grupos homogêneos. Perdemos a capacidade de dialogar com o diferente e de compreender o ecossistema do problema.

Esse encapsulamento nos enfraquece e deixa reféns do medo. Ao invés de olhá-lo com clareza e profundidade, como sugere Thich Nhat Hanh, tentamos evitá-lo, ambicionando tornar certo o incerto. A fé, o desconhecido, se tornam certezas vociferadas a plenos pulmões. Podemos gritar à vontade, ninguém está ouvindo na outra bolha.

Enquanto o primeiro aspecto trata da nossa relação com o mundo e o segundo da nossa relação com o outro, o terceiro fala do Impacto no Eu. Para Byung-Chul Han, precisamos de privacidade para existir, mas nos negamos privacidade ao nos expor online. Somos programados para nos conectar, mas não para lidar com o julgamento de milhares.

Estamos cada vez mais tensos, inseguros. Nos autocancelamos ou atacamos, reproduzindo os mesmos comportamentos que nos infligiram. Usamos as vidas de pessoas que sequer conhecemos como proxies de nossas frustrações e atacamos, sem dó, alguém de quem não sabemos nada... só que cometeu um erro. Quem nunca?

Falamos da tecnologia, dos impactos... falta falar do futuro. Voltemos à escola. Todos estes elementos estão presentes. Sabemos que não é o fato de a escola ser católica que incutiu nos alunos o gosto pela pornografia. Sabemos que escolas conteudistas não formam pessoas piores moralmente. Sabemos que há bons pais ricos e bons pais pobres. Sabemos que as tecnologias vão se espalhar cada vez mais. Sabemos que diálogo é fundamental. Sabemos que famílias e escola têm papel fundamental nisso. Sabemos de muitas coisas, mas não sabemos de mais coisas ainda.

Essas são conversas que precisam de calma, cuidado e tempo. Conversas nas quais a gente precisa se permitir entrar de peito aberto, cheios de dúvidas, desconfortos e esperanças.

Lamento decepcionar quem esperava uma receita para o futuro. As teorias dizem que para lidar com desafios adaptativos precisamos nos permitir aprender. Aguçar curiosidade e empatia, nos permitir o desconforto do desconhecido. Ir avançando juntos, tão rápido quanto a gente consiga, tão devagar quanto a gente precise. No fim da linha, acredite, haverá uma canção nova dos Beatles esperando por nós.

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