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Maria Paula

Cuidar de quem cuida

A sociedade precisa se libertar do foco em alta produtividade que tomou conta de todas as profissões

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Maria Paula

Atriz, autora, psicanalista com mestrado em desenvolvimento humano e saúde (UnB) e embaixadora da paz

Austin (EUA)

Vivemos em uma época de crise sem precedentes relacionada à saúde mental e à construção de uma sociedade acolhedora, capaz de se adaptar de modo a ajudar quem está passando por dificuldades.

A situação é gravíssima e atinge inclusive a saúde mental dos médicos, que são as primeiras pessoas a serem procuradas por quem precisa de ajuda. Mas alguém precisa cuidar de quem cuida de todo mundo, não?

Os dados são alarmantes. De acordo com a pesquisa Panorama da Saúde Mental, realizada pelo centro de pesquisas da Afya, 46% dos médicos têm ou já tiveram diagnostico de depressão, 47% de transtorno de ansiedade e 62% de síndrome de burnout.

Profissionais do MSF (Médicos Sem Fronteiras), durante trabalho em UTI na zona leste de São Paulo, durante a pandemia de Covid-19 - Eduardo Anizelli - 23.jul.2020/Folhapress

A realidade dos médicos no Brasil e no mundo é impactada constantemente por uma cultura tóxica que está causando estrago na vida de quem mais confiamos na hora de pedir ajuda. A boa notícia é que avanços tecnológicos podem mudar esse cenário tão desfavorável, mas vamos precisar de uma boa dose de conscientização da sociedade para chegarmos lá.

Na lista de soluções abordadas nos painéis da trilha de saúde mental do SXSW 2024 estão o uso de inteligência artificial (IA) para ajudar a tirar das costas desses profissionais o preenchimento de papelada, um fator sabidamente muito estressor.

Estima-se que 30% do tempo dos médicos durante a prática clínica é gasto em burocracias, tarefas que a IA poderia assumir com rapidez e eficiência, liberando-os para cuidar de seus pacientes.

Outras tecnologias também podem colaborar para uma prática médica menos estressora: as bibliotecas virtuais assistidas por inteligência artificial vão permitir ao médico estabelecer diagnósticos de maneira mais assertiva, amenizando também a pressão da responsabilidade extrema de ter a vida de alguém nas mãos e prevenindo erros ou exames desnecessários; a telemedicina, complementada por dados capturados por gadgets e aplicativos de celular que percebem a mudança de coloração da pele, batimentos cardíacos, pressão arterial, saturação de oxigênio e outros, permitirá maior eficiência na assistência de saúde de maneira remota, diminuindo a hospitalização.

A saúde está passando por uma revolução tecnológica, mas uma mudança de mentalidade precisa acontecer para que os benefícios possam ter um efeito significativo sobre o médico e sua saúde mental.

Como pode um médico manter qualidade de vida quando o tempo médio de trabalho da classe é de 52,5 horas semanais, sendo que 25% chegam a trabalhar mais de 60 horas semanais (segundo o levantamento da Afya)?

Por consequência, baixa é a aderência desses profissionais a bons hábitos de vida, que, ironicamente, eles mesmos recomendam: 65% declaram não manter uma rotina de sono reparador de pelo menos 6 a 8 horas, 67% não têm rotina de lazer e 71% não praticam atividade física.

Os médicos assumem que o excesso de horas de trabalho e a falta de tempo são os principais estressores que levam à síndrome de burnout, mas parecem não se mover para mudar esta situação.

Segundo o médico e diretor do centro de pesquisas da Afya, Dr. Eduardo Moura, "a grande verdade é que na medicina há uma cultura que valoriza o profissional workaholic, em que ter tempo livre para cuidar de si mesmo e ter qualidade de vida é visto como fraqueza, como preguiça, como falta de engajamento no trabalho, enquanto profissionais se vangloriam pela rotina pesada que levam, cultivada como um sinal de status social, um superprofissional que tudo aguenta e tudo enfrenta".

Segundo o médico, o próprio mercado de trabalho cria o contexto propício para isso, dado que oportunidades de emprego não faltam e o médico pode trabalhar o quanto quiser ou o quanto precisa para manter seu custo de vida alto.

Os empregadores também contribuem para essa cultura, premiando os profissionais que mais se comprometem com carga horária junto à instituição e propiciando um ambiente em que os próprios profissionais veem como inapropriado diminuir a carga de trabalho para priorizar saúde e bem-estar.

Minha visão de mulher e mãe clama por amplas redes de apoio capazes de proteger essa camada da sociedade absolutamente primordial para todos.

Talvez algum tipo de regra de conduta pudesse ser implantado de modo a blindar os médicos. Algo parecido com o que acontece com os pilotos de avião, que têm um limite de horas de voo por semana devido ao risco que a exaustão representa para a segurança dos passageiros.

Os médicos também poderiam se beneficiar de um limite de horas de trabalho semelhante, para garantir a segurança dos pacientes e a própria saúde, enquanto uma nova mentalidade fosse sendo construída.

Mas, para que uma mudança da mentalidade ocorra de fato e um novo paradigma se instale, a sociedade precisaria se libertar do foco em alta produtividade que tomou conta de todas as profissões, sendo, inclusive, ensinado desde cedo nas escolas e estimulado por todas as mídias. Ou seja... o buraco é mais embaixo.

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