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Ian Urbina

Oceanos devem ser tratados menos como mercearias e mais como bibliotecas

Crimes ambientais e contra direitos humanos ficam impunes porque leis existentes são difíceis de aplicar

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Ian Urbina

Diretor do Outlaw Ocean Project, organização jornalística sem fins lucrativos com base em Washington cujo foco são problemas ambientais e de direitos humanos em alto-mar.

Dois terços do planeta estão cobertos por água, mas grande parte desse espaço não é governado. Os crimes ambientais e contra os direitos humanos ocorrem frequentemente e com impunidade porque os oceanos estão dispersos e as leis existentes são difíceis de aplicar.

Parte do problema, no entanto, está nas nossas cabeças. Os oceanos são tipicamente, e às vezes corretamente, vistos como mero habitat marinho. Mas eles são muito mais do que isso. A menos que reconheçamos essa verdade, a menos que reimaginemos esse domínio de forma mais ampla, continuaremos a ficar aquém do necessário para governar, proteger e compreender os oceanos.

Os oceanos são um local de trabalho. Mais de 50 milhões de pessoas trabalham no mar e muitas destas pessoas trabalham na pesca, que é a profissão mais perigosa do mundo, resultando em mais de 100 mil fatalidades por ano –mais de 300 por dia.

Os oceanos são uma mercearia. Esse lugar longe da costa sempre evocou uma sensação de infinidade, abundância e fartura incansável –onde os recursos se regeneram indefinidamente. Mais de 50% das proteínas animais que as pessoas consomem em algumas partes do mundo vêm do mar.

A pesca industrial avançou tanto tecnologicamente que se tornou menos uma arte e mais uma ciência, mais uma colheita do que uma caça. A consequência é que mais de um terço dos estoques mundiais estão sendo superexplorados.

De costas em um barco pequeno inflável, um homem usando capacete se aproxima de um navio
Cena do primeiro episódio da série documental 'Despachos do Oceano Fora da Lei', dirigida por Ian Urbina - Projeto Oceano Fora da Lei/Divulgação

Os oceanos são um escape. Durante séculos, a vida no mar tem sido romantizada como a expressão máxima da liberdade –um refúgio, distintamente afastado da intromissão governamental, uma oportunidade para explorar, para reinventar. De "Moby Dick" a "Vinte Mil Léguas Submarinas", caçadores, aventureiros, exploradores e navegadores têm perseguido esse sonho.

Os oceanos são uma prisão. Longe de significar um escape ou uma fonte de recursos, a vida em alto-mar é, para muitos trabalhadores, uma prisão sem grades. Todos os anos, dezenas de milhares de homens e rapazes são comprados e vendidos como propriedade, e ficam presos em cativeiro, por vezes durante anos –até mesmo acorrentados– em navios de pesca de águas distantes.

Os oceanos são um local de descarte. Durante séculos, a humanidade tem visto os mares como tão vastos que têm uma capacidade ilimitada de absorver e metabolizar qualquer coisa, uma percepção que nos tem dado licença para despejar praticamente tudo no mar. Petróleo, esgoto, cadáveres, efluentes químicos, lixo, material militar, e até mesmo superestruturas marítimas como plataformas petrolíferas são deixadas para desaparecem no oceano, como se fossem engolidos por um buraco negro, para nunca mais serem vistos.

Os oceanos são um cemitério. Milhares de migrantes desaparecem a cada ano –muitos deles no mar Mediterrâneo, por exemplo, enquanto tentam desesperadamente chegar à Europa a partir da Líbia, do Marrocos e da Tunísia. Quando mares agitados, traficantes de seres humanos ou mesmo a Guarda Costeira desses países afundam os barcos apinhados de gente, aqueles passageiros não apenas se afogam. Os seus corpos desaparecem numa escuridão que os esconde da atenção do mundo. E assim o ciclo sinistro continua.

Os oceanos são uma fartura. Seria roubo tirar quantidades não controladas de algo de uma área que pertence a todos? Não, o nome disso é pesca não regulamentada. A falta de regulamentação é a norma em águas internacionais. Perfuradores de petróleo e gás, empresas de mineração do fundo do mar, caçadores de tesouros e ladrões de destroços sabem muito bem disso.

Os oceanos são uma estrada. O alto-mar é a via expressa do comércio mundial. Na atual economia globalizada, parte da razão pela qual mais de 70% dos produtos que consumimos viajam por navio é que o alto-mar está menos sobrecarregado com fronteiras e burocracias do que a terra.

Os oceanos são um depósito de armas. Com mais navios do que nunca, os oceanos estão também mais armados e perigosos. Quando piratas começaram a operar em grandes extensões do mar, muitos navios mercantes contrataram empresas de segurança privada e suas forças rapidamente ultrapassaram a capacidade de policiamento de muitos governos.

Os oceanos são uma oportunidade. Não apenas um submundo arenoso, os oceanos também representam uma oportunidade de salvação. Para isso, os governos precisam considerar o bem comum acima do interesse próprio e cooperar na gestão do alto-mar.

O recente tratado da ONU sobre proteção da biodiversidade marinha em águas internacionais foi um passo nessa direção. O teste seguinte é se os governos podem usar os oceanos como uma oportunidade para colaborar na mitigação da crise climática. Os oceanos já absorveram 90% do excesso de calor do aquecimento global, mas hoje também são 30% mais ácidos do que antes da Revolução Industrial.

Um primeiro e essencial passo para combater estes muitos problemas é ampliar a nossa percepção sobre os oceanos. "Despachos do Oceano Fora da Lei" é uma série documental que oferece uma viagem sóbria através dessa fronteira indomada.

Seu objetivo é instigar o público a reimaginar os oceanos não como algo que tomamos por garantido, uma caçamba de lixo sem fundo, um recurso que se autoabastece para sempre e que utilizamos para encher os nossos estômagos ou encher nossas carteiras, mas sim como um vasto habitat que devemos deixar em paz, um local de trabalho que necessita de regulamentação, menos uma mercearia e mais uma biblioteca, um bem comum a ser protegido.

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