Claudia Costin

Diretora do Centro de Políticas Educacionais, da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial.

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Claudia Costin

A ordem e a vida

Na década de 1980, David Remnick, então jornalista do "Washington Post", foi enviado à União Soviética para cobrir os fatos que sucederam o anúncio da perestroika e da glasnost. Acompanhou a reabilitação de inúmeras vítimas de Stálin, a anistia ao internacionalmente reconhecido Andrei Sakharov e a tentativa de golpe dos conservadores em 1991, em aliança com a KGB, contra as reformas de Mikhail Gorbachev.

Ao pesquisar a persistente admiração por Stálin em alguns grupos espalhados pelo país, a despeito de a maior parte das famílias contarem com membros presos ou assassinados pelo antigo secretário-geral do partido e líder da nação, Remnick constatou que muitas das pessoas por ele entrevistadas, que eventualmente se revelavam admiradores do tirano elogiavam não as inegáveis conquistas da União Soviética sob seu regime, como a rápida industrialização ou seu papel na vitória contra o nazismo, mas o fato de que ele teria garantido a ordem, o que se perdera, segundo eles, depois de sua morte.

De fato, sentimo-nos mais seguros se houver uma ordem estabelecida que assegure certa previsibilidade dos eventos e nos permita fazer planos viáveis, projetar o futuro. Mas se havia, à época, alguma certeza, mesmo entre membros do Comitê Central do Partido, era que, por qualquer razão, todos teriam a chance de ser presos por qualquer acusação, inclusive a de serem judeus (como ocorreu logo após o chamado complô dos médicos).

Mas isso pouco importa para quem valoriza a ordem, na forma de um governante com pulso forte que reprime quem pensa diferente, parece impudico, um adversário político, ou pode assumir a culpa, frente a preconceitos bem disseminados na população, por algo que não ande bem. Precisamos restaurar a ordem, já que a vida e os processos de transformação nos dão uma impressão de bagunça que nos traz repulsa e medo.

A busca da ordem é própria da condição humana, afinal precisamos de algumas regras claras para definir direitos, as bases do relacionamento social e, em um país, as principais políticas públicas. Mas a ilusão de que um pulso forte substitui um processo mais complexo de pactuação e de convivência com quem discorda da ordem estabelecida por enxergar outras possibilidades de organização e representação da vida tem sido responsável por muito sofrimento e descaminhos.

Esse é o caso dos 20 milhões de mortos pelo regime de Stálin e dos sem número de perseguidos políticos e "desaparecidos" das diversas ditaduras que a humanidade construiu, muitas vezes em busca de uma ordem perdida. Não há ordem que justifique o assassinato da vida, em suas múltiplas representações.

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