Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Livros de Liebling e Umberto Eco falam sobre comer na velha Paris

Hoje, Tóquio deve ser a cidade do mundo onde mais se come bem, mas, ainda assim, se você tomar suas precauções (tipo usar bons guias para não cair em roubadas), em nenhum lugar se come como em Paris.

A literatura sempre perpetuou essa imagem, principalmente depois de o restaurante moderno ser inventado e difundido a partir do final do século 18. Já naquela época o advogado Grimod de la Reynière (1758-1837), crítico gastronômico pioneiro, editava seu "Almanach des Gourmands", no qual, de 1803 a 1812, escreveu sobre receitas, chefs, produtos e restaurantes.

Seus banquetes com muitos convivas serviam para provar produtos e pratos que comporiam material para seu guia –eram refeições tão espetaculares que o público pagava ingresso para... assistir.

Depois do fim do "Almanach" (que, ao que parece, terminou comprometido por receber dinheiro por suas opiniões), outros guias surgiram na França, como "Les Plaisirs de Paris", "Guide Gourmand de Paris" e o mais longevo "Michelin".

Crédito: Divulgação Vista para a Torre Eiffel, em Paris
Vista para a Torre Eiffel, em Paris

Mas outro tipo de literatura também se debruçava sobre a gastronomia da cidade, a de memórias gustativas, das quais há centenas, se não milhares de exemplos. Foi com prazer redobrado (embora azedado pela tradução e revisão) que reencontrei o "Fome de Paris", de 1962 (a edição brasileira é de 2005), escrito pelo jornalista americano A. J. Liebling (1904-1963).

Dono de um texto delicioso (não à toa trabalhou por anos para a revista "New Yorker"), só escrevia sobre o tema esporadicamente. Foi sobre suas memórias da convivência com a cozinha francesa que ele escreveu para a revista a série de textos transformados no livro.

Liebling foi para Paris ainda jovem e consumia quase toda a mesada em restaurantes. Começou a engordar, tentou emagrecer fazendo boxe (que seria uma de suas especialidades jornalísticas mais tarde), mas constatou que quanto mais exercício fazia, mais fome tinha...

Seu livro coteja impressões gastronômicas dos restaurantes da cidade nos diferentes momentos em que lá esteve: nos anos 1920, depois em 1939 (como correspondente de guerra) e finalmente em 1955 e 1960. O tom é de desolação: para ele, as pessoas comem cada vez pior.

Ele diz que "os restaurantes chiques (...) já estavam começando sua transição de santuários de degustação para vitrines da figura esquálida. Os homens, também, haviam se voltado para a mortificação da carne". Ele vê uma febre de temores hepáticos, busca de saúde sem prazer e já não encontra os pratos de longo cozimento: apenas carnes rapidamente passadas na chapa (tudo isso, aliás, bem atual).

Cemitério de Praga
Umberto Eco
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É a antítese do cenário mostrado em outro livro, que boa parte se passa em Paris, mas num período anterior, o da segunda metade do século 19, no qual não faltam grandes restaurantes e prolongadas refeições: "O Cemitério de Praga", do italiano Umberto Eco (1932-2016).

A curiosidade do livro é que se trata de ficção, mas os fatos e personagens da trama –de Garibaldi a Freud, entre tantos– são calcados na realidade, assim como restaurantes e menus mencionados pelo infame (e, neste caso, fictício) personagem capitão Simonini.

Os restaurantes que ele menciona efetivamente existiram, como o mítico Café Anglais (que hoje tem parte de seu mobiliário em exposição no La Tour d'Argent). E, entre eles, alguns ainda continuam na ativa: além do Tour d'Argent, o Grand Véfour, o Lapérouse, o Au Rocher de Cancale e o Café de la Paix.

É muito saboroso ler as descrições (fiéis) tanto dos ambientes e da atmosfera quanto dos pratos da época. O autor, no entanto, declarava-se desinteressado pela gastronomia e pretendia o efeito inverso: ao colocar na boca do personagem desprezível tamanho prazer à mesa queria provocar repulsa pela suposta frivolidade do personagem. Bem, não conseguiu: o personagem é repulsivo, mas suas refeições...

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