Menos de 10% das postagens sobre Moïse mencionavam racismo, diz estudo

Congolês foi morto a pauladas em janeiro deste ano no Rio de Janeiro

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São Paulo

Menos de 10% das postagens no Twitter e no YouTube analisadas em estudo sobre o assassinato do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe mencionaram racismo, aponta pesquisa. O levantamento foi desenvolvido pelo laboratório de pesquisa Aláfia Lab em parceria com a empresa de marketing digital Zygon AdTech.

O estudo analisou 23.470 tuítes publicados sobre o caso no período de 28 de janeiro a 21 de fevereiro deste ano, além de comentários em dez vídeos sobre a morte de Moïse no YouTube. Para serem selecionados, os vídeos precisavam ter mais de 100 comentários e serem parte de canais de mídias tradicionais ou de influenciadores. Os escolhidos tiveram 1,7 milhão de visualizações, 75 mil curtidas e 7.630 comentários.

Moïse foi morto a pauladas ao lado do quiosque em que trabalhava na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, no dia 24 de janeiro.

Câmeras de segurança mostram os responsáveis pelo crime utilizando pedaços de madeira e imobilizando o congolês durante o ataque.

Em depoimento à Polícia Civil, um dos acusados da morte afirmou que agiu motivado por raiva, porque a vítima estava bebendo muito e "perturbando há alguns dias".

Movimentos de luta por direitos humanos e contra o racismofazem ato pedindo justiça no caso de Moïse Mugenyi Kabagambe - 5.fev.2022 - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Apesar de os acusados de assassinar Moïse afirmarem que o crime não ocorreu por questões raciais, especialistas dizem que o racismo poderia ser levado em conta na acusação. Para um defensor público ouvido pela Folha em fevereiro, porém, seria necessário que a investigação comprovasse a motivação racial para que pudesse ser considerado na sentença.

A nova pesquisa ressalta que o assassinato só ganhou grande repercussão nas redes sociais quando foram organizadas manifestações de rua. Isso aconteceu mais de dez dias depois das agressões.

Na época, as menções nas plataformas avaliadas ligando o caso à questão do racismo apareceram de maneira minoritária, segundo o estudo. A questão racial representa apenas 9,7% das menções no YouTube e 6,7% no Twitter.

"Mesmo com grandes episódios de visibilidade e comoção pública, o racismo continua um elemento invisível para boa parte da sociedade brasileira", afirma o estudo.

Os pesquisadores optaram pelo Twitter por ser uma rede de ampla repercussão política e social, uma vez que reúne jornalistas, celebridades, influenciadores e outros formadores de opinião. Além disso, afirmam os cientistas, os debates iniciados na plataforma frequentemente chegam a veículos de imprensa tradicionais e independentes.

Já o YouTube foi escolhido por ser uma rede repositório, em que os vídeos e seus comentários podem ser acessados com maior facilidade, sem a vulnerabilidade do feed de notícias. Outra característica da plataforma é o alto nível de interação nos comentários.

A escolha também se deu devido à dificuldade de acessar dados de outras redes sociais, como o Facebook, diz Nina Santos, diretora do Aláfia Lab e pós-doutoranda no INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital).

"O acesso aos dados das plataformas é uma questão bastante sensível para conseguirmos fazer análise, e que eu acho que precisa ser intensamente debatida com as plataformas, porque sem conseguir fazer análise vira uma caixa-preta total e absoluta", diz.

Santos segue os passos do avô, Milton Santos (1926-2001), um acadêmico negro considerado um dos maiores geógrafos da história do Brasil, responsável pela criação de uma perspectiva da geografia que engloba o enfrentamento às desigualdades sociais e o racismo.

A pesquisa se dividiu em três eixos de análise para entender como casos de racismo têm sido tratados nas redes sociais: a temática, a temporal e os atores.

A primeira parte analisou o ângulo pelo qual as pessoas se referem ao ocorrido, e para isso foram separados grupos de palavras mais usadas. O estudo concluiu que as reações nas redes vão no sentido de demandas por Justiça –majoritárias no Twitter– e de denúncias da violência no assassinato –tema que domina os comentários no YouTube.

Com relação ao eixo temporal, o estudo conclui que a demora e a efemeridade com que o assassinato foi tratado diz muito sobre como o racismo é abordado de forma episódica, um problema reforçado pela própria dinâmica nas redes sociais.

Apesar de o assassinato do congolês ter acontecido em 24 de janeiro, só em 1º de fevereiro houve o que o estudo considerou como um pequeno pico de menções nas redes, provocado por uma declaração da mãe do jovem negro assassinado pedindo por Justiça –foram 2.283 tweets.

Em 5 de fevereiro, o tema atingiu o seu maior pico de atenção, registrando 15.302 tweets (65,2% das mensagens coletadas). De acordo com a pesquisa, o que gerou esse volume de menções foi a repercussão de diversas manifestações organizadas em várias cidades pelo país.

A diretora do Aláfia Lab afirma que a existência de picos é um padrão comum das redes sociais, porém, quando se trata de racismo, os pesquisadores observam uma repetição ainda maior nesse padrão.

"O caso das questões raciais é muito gritante. É um tema que ganha alta visibilidade em momentos muito específicos, mas essa visibilidade não se mantém, não se torna um tema cotidiano e por isso não se torna uma dificuldade de ver o problema como estrutural", diz.

O último eixo analisado foram os atores, ou seja, as personalidades, sobretudo as políticas, ligadas ao tema. Sérgio Camargo, ex-presidente da Fundação Palmares, aparece como figura central em ambas as plataformas, mais do que o próprio presidente Jair Bolsonaro (PL).

"Ele é citado 143 vezes no YouTube, enquanto Bolsonaro aparece com 133 menções. Já no Twitter, são 553 citações a Camargo e 383 a Bolsonaro", diz a pesquisa.

O destaque se deve à declaração feita por Camargo de que Moïse seria um "vagabundo morto por vagabundos mais fortes".

Outra personalidade muito citada foi a ex-BBB Juliette, cuja postagem pedindo Justiça recebeu muitas curtidas e retuítes.

"Moïse buscou refúgio, acolhimento e dignidade e encontrou RACISMO e XENOFOBIA no nosso país. Que lugar é esse onde uma vida vale menos que umas diárias de trabalho?! Queremos #JustiçaporMoise", escreveu Juliette no Twitter, em referência a declarações da família do congolês de que ele teria sido espancado após cobrar diárias atrasadas.

Para Samuel Vida, professor de direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e coordenador do programa Direito e Relações Raciais, a discussão sobre racismo no Brasil continua em um paradigma equivocado. No debate público, ele se restringe a situações com manifestações explícitas de ódio racial.

"O racismo sempre foi um fenômeno complexo, multiforme, tirânico, que se atualiza e se reelabora o tempo todo. A cada momento histórico há formas específicas para manter a sua finalidade, que é exercer o papel de fenômeno de controle político, de exercício de poder", afirmou o professor.

Segundo ele, pessoas negras são consideradas rotineiramente, nas relações sociais, como subcidadãos, que podem ser mantidos à margem da sociedade. "Quando reivindicam seus direitos formais são tratados como inoportunos. Para chegar a agressão física não é muito distante", afirma.

Um fenômeno que justifica a dificuldade de relacionar o caso Moïse a uma situação racista, segundo ele, seria o negacionismo do racismo. "O negacionismo é uma das razões pelas quais o senso comum nas redes sociais se sente à vontade para reproduzir atitudes como essa, de que não há conexão entre a violência e a manifestação do racismo", diz.

Outro fenômeno, na sua avaliação, seria a farsa da democracia racial. Há uma predisposição desses dois fenômenos de sustentar que a prática do racismo é exceção, não a regra, avalia Vida.

"Moïse, infelizmente, é a expressão e a consequência da regra de que a vida de pessoas negras vale menos e de que os direitos das pessoas negras são não legítimos", conclui.

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