Após tirar baço, Ana Marcela nada 15 km por dia por Tóquio-2020

PAULO ROBERTO CONDE
ENVIADO ESPECIAL A SANTOS

Ao longo de 45 dias, a vida de Ana Marcela Cunha, 25, tornou-se um calvário.

Acostumada a percorrer milhares de metros diariamente em treinamento, ela viu-se atada a uma cama, sem permissão médica de fazer qualquer esforço abdominal.

Havia um único movimento liberado: mudar da posição deitada para sentada.

Ainda assim, mover-se era mais doloroso do que desfilar braçadas por 10 km. Para tudo, dependia do auxílio dos pais. Às vezes, faltava-lhe força até para chamá-los. Tanta inatividade rendeu-lhe um ganho de peso de dez quilos.

"A primeira coisa que eu ouvi do médico é 'não faça nada [brusco] porque pode te dar uma hérnia'", contou a maratonista aquática, eleita três vezes a melhor do mundo e dona de seis medalhas em Campeonatos Mundiais.

A cautela se justificava. O estafe não queria que os pontos dados nas quatro pequenas incisões feitas na barriga da nadadora cedessem.

Por duas delas foram introduzidas lâminas cirúrgicas para a intervenção. Em um outro corte penetrou uma câmera, para guiar o procedimento. Por fim, um quarto foi usado para retirar o baço.

As cicatrizes impõem-se na pele de Ana Marcela como um lembrete de que o dia 22 de outubro pode ter se tornado uma guinada em sua vida.

A remoção do órgão, feita naquela data, ajudou a atleta a superar desafio maior do que qualquer travessia em mar aberto: o crescente problema de saúde que fazia despencar sua quantidade de plaquetas e, consequentemente, sua imunidade.

A doença autoimune, descoberta no início de 2016, acompanhou Ana Marcela por dez meses e a fez entupir-se de remédios, principalmente corticoides. No longo prazo, a frequência e a dosagem poderiam representar risco à saúde da baiana.

"Não se sabe o porquê nem como peguei a doença. Pode ter sido por picada de inseto ou pólen de uma flor", disse a nadadora na piscina da Universidade Santa Cecília, clube que defende, em Santos.

Ana Marcela só pôde voltar para os treinos de fato no dia 3 de janeiro, mais de 70 dias após a cirurgia.

Em fevereiro, ela nadou a etapa de abertura da Copa do Mundo de maratona aquática, na Argentina, e terminou em quinto lugar. Em março, disputou outra, em Abu Dhabi, onde foi a 12ª.

Resultados à parte, a recuperação a fez projetar um ciclo olímpico rumo a Tóquio-2020 na elite internacional. Atualmente, ela nada, em média, 65 km por semana. São 15 km de braçadas por dia.

O próximo objetivo da nadadora é a seletiva nacional de Foz do Iguaçu, nos dias 11 e 13 de maio, para o Campeonato Mundial de Budapeste (HUN), que ocorrerá em julho. A nadadora tentará vaga nas provas de 5 km e 10 km.

Aspirações competitivas à parte, a baiana está aliviada com a saúde em dia. Desde que recebeu alta, não precisou recorrer a batelada de remédios de outrora.

"Os exames começaram a mostrar que tudo estava dando respostas. Hoje chego a 300 mil plaquetas sem problema nenhum, e antes não dava 7.000, o que era perigoso. Cheguei a suspeitar até de leucemia", afirmou.

'NÃO DESISTO NUNCA'

Cotada como favorita a medalha na Rio-2016, Ana Marcela terminou a prova dos 10 km na décima posição. Na ocasião, culpou a perda de alimentação.

Na mesma disputa, Poliana Okimoto levou o bronze.

No retorno à natação, ela quer se apoiar nos exemplos de Diego Hypolito e Rafaela Silva, medalhistas no Rio, para mirar medalha nos Jogos de Tóquio, daqui a três anos.

Hypolito chegou à Olimpíada de Pequim, em 2008, e durante a execução de sua série no solo caiu de costas. Nos Jogos de Londres, também sofreu queda. No Rio, porém, foi medalhista de prata.

Também em Londres, Rafaela Silva foi eliminada prematuramente e trocou ofensas em redes sociais com seguidores. Nos Jogos do Rio, levou o único ouro do judô.

"São os maiores exemplos. O Diego caiu de cara, de bunda e é medalha de prata. A Rafaela saiu de Londres por baixo e agora foi ouro", disse.

Ana Marcela acredita que a consistência será chave para os próximos anos do ciclo olímpico. "Eu sempre briguei para estar entre as dez primeiras em Mundiais e Olimpíadas. Essa constância me dá segurança de que posso me manter na elite."


O BAÇO

Órgão esponjoso de forma oval, fica na parte superior esquerda do abdômen, abaixo da caixa torácica

Crédito:

O que faz?
Exerce função imunológica e hematológica: armazena células de defesa do corpo e, em outra parte, destrói hemácias defeituosas ou idosas

Como é possível viver sem ele?
Ao removê-lo, o corpo perde capacidade de criar anticorpos e a possibilidade de combater infecções cai. Porém, tais deficiências podem ser combatidas com vacinas e antibióticos

Como é feita a cirurgia para removê-lo?
No caso de Ana Marcela, a cirurgia não será incisiva. Serão feitos pequenos furos no abdômen pelos quais passarão tubos e instrumentos que auxiliarão na retirada do órgão, por meio de um recipente

Fontes: Site Drauzio Varella, Manual Merck

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