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Começou
tem uns oito anos, depois de uma crítica. Desde então, o diretor
e jornalista Sérgio de Carvalho escreve regularmente contra mim,
sem jamais citar o meu nome; pois bem, cansei de esperar para poder
responder.
Além da reação costumeira da classe teatral, de que
não passo de uma besta, ele já questionou desde o uso da palavra
derrisão, dada como pedante, até minha "labirintite da suposta multiplicidade"
ou minha "despolitização diversiforme de pós-modernista multiculturalista
(que no fundo escreve a serviço de uma visão política)". As duas
últimas são referências, imagino, às interpretações de meu livro,
"Divers/idade, um Guia para o Teatro dos Anos 90".
Sobretudo, o que se insinua é que sou de direita. Não só eu. Sobre
o consagrado e invejado encenador Antônio Araújo, Márcio Marciano,
co-diretor de Carvalho, escreveu que ele faz "uma opção conservadora,
pressupõe uma saída individualista, anula a perspectiva crítica"
e, insulto supostamente maior, oferece "um paliativo idealista".
Em suma, é de direita.
Marciano
e Carvalho não estão inteiramente sós. Como descreveu Décio
de Almeida Prado três anos antes de morrer, já pressentindo o que
representava essa renascente patrulha ideológica, eles formam "um
pequeno grupo de indivíduos que trocam incessantemente entre si
impressões políticas e estéticas, com toda a passionalidade das
minorias aguerridas".
Distorcem fatos históricos, como escreve Décio sobre Iná Camargo
Costa, para apontar os diretores do TBC, Augusto Boal, Zé Celso
e quem mais aparecer como sendo de direita, quando não fascistas.
Fizeram isso com o próprio Décio. São "herdeiros autorizados de
Karl Marx", que se escrevem prefácios uns aos outros, entrevistam-se
uns aos outros, resenham-se uns aos outros.
***
Carvalho e Marciano são aquisições recentes e acessórias, eles que
renegaram o que diziam e faziam até então, estimulados pelas subvenções
ao centenário brechtiano, mas o problema vem de longe. Começou com
o ruidoso rompimento de Zé Celso e Roberto Schwarz, respectivamente
diretor e tradutor de "Galileu Galilei", nos anos 60; rompimento
que por sua vez ecoou o ataque do francês Roger Planchon, na época,
ao "irracionalismo" de Artaud, apontado como fascista, em oposição
ao "racionalismo" brechtiano.
Esse maniqueísmo retornou ao Brasil na entrada dos anos 90,
quando a débâcle do Leste Europeu pôs o "pequeno grupo de indivíduos"
à procura do eixo. Ele foi identificado em dois livros que estão
para completar dez anos e que buscavam adaptar o pós-modernismo
às escrituras marxistas: "Pós-modernismo, a Lógica Cultural do Capitalismo
Tardio", do americano Fredric Jameson, e "O Colapso da Modernização",
do alemão Robert Kurz.
O primeiro é certamente o melhor, ele que nem esconde suas fontes.
"Minha versão de tudo isso obviamente é muito devedora a Jean Baudrillard",
escreve Jameson, mencionando ainda os situacionistas de Guy Debord.
(É chocante a humildade. Seria o mesmo que Schwarz dizer que as
"idéias fora de lugar" são uma versão, com sinal trocado, da antropofagia
oswaldiana.) O problema, diz Jameson, é que os fenômenos midiáticos
do pós-modernismo estavam "colonizados (na nossa ausência) pela
direita".
O que ele fez foi buscar uma abordagem "totalizante" do pós-modernismo,
em oposição a Jean-François
Lyotard e a "direita", com seus questionamentos das visões,
precisamente, "totalizantes". Essa foi a palavra-chave para os novos
patrulheiros. Jameson e seguidores locais defendem o "impulso totalizador",
em oposição ao discurso das diferenças, da fragmentação, da diversidade,
em suma, da "guerra à totalidade" desenvolvida pela "direita".
(Um registro cômico: no esforço quase esquizofrênico de engessar
o pós-modernismo num esquema "totalizante", Jameson cedeu ao peso
retórico dos originais e acabou recebendo duas vezes o Prêmio de
Má Redação da revista "Philosophy and Literature". Prêmio que, vale
dizer, este texto que eu escrevo também faz por merecer: é impossível
falar do pós-modernismo sem cair no pior jargão pós-estruturalista.)
***
Fredric
Jameson escorrega aqui e ali, por exemplo, ao dizer que uma
comparação de Stálin com Hitler é "esdrúxula", mas é Robert Kurz
quem expõe mais claramente o que significa, ao fim e ao cabo, o
tal "impulso totalizador". Kurz escreve em seu livro que as regras
democráticas "são em sua essência abstratas e insensíveis, pois
seu verdadeiro fundamento é o movimento do dinheiro". Em suma, também
a democracia é de "direita", contaminada pelo capitalismo tardio
do pós-modernismo.
A diferença é que agora não se propõe socialismo ou ditadura do
proletariado no lugar, pois até o proletariado foi contaminado,
é de "direita". Não se propõe coisa nenhuma, aliás. Nada, nihil.
Kurz divulga no livro oráculos os mais apocalípticos, como o colapso
que atingirá o Ocidente "provavelmente nos anos 90" ou, em outras
palavras: "É muito provável que o mundo burguês entrará já antes
de terminar o século 20 numa era de trevas, do caos, tal como jamais
existiu na história do mundo".
Nada mal, não tivessem os anos 90 terminado há quatro meses. Aliás,
não é de agora que os patrulheiros precisam rever as escrituras
outra vez, já que, poucos anos depois de lançados os dois livros-guias
que supostamente reavivaram o "impulso totalizador", aconteceu a
Internet. Para não falar das manifestações "diversiformes" de Seattle
e de Porto Seguro, na entrada do novo século.
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10/5/2000 -
Eu, eu, eu
03/5/2000 - Sexo explícito
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