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29/07/2003 - 03h26

Fredric Michael Litto: Entre o telescópio e o caleidoscópio

FREDRIC MICHAEL LITTO
especial para a Folha de S.Paulo

Um telescópio que permitisse divisar o cenário da educação no Brasil, num horizonte de 25 anos, revelaria uma vertiginosa complexidade. Focando-o à esquerda, vejo o efeito de um caleidoscópio em cujos espelhos novas estruturas se formam continuamente.

Abre-se à virtualidade escópica uma pluralidade de opções e gostos em inovadoras oportunidades educacionais e profissionais. Adolescentes, aprendendo sozinhos conceitos avançados em matemática, física e outros domínios, utilizam "objetos de aprendizagem" encontrados na internet de décima geração, dispensando separações artificiais por faixa etária ou grau de escolaridade.

Com a jornada de trabalho reduzida a cinco ou seis horas, e maior tempo para lazer, tornam-se obrigatórios, para qualquer formação, cursos de apreciação musical, artes, literatura, teatro e cinema, fontes de experiências estéticas ricas e variadas.

Esses cursos atravessam tanto a educação cuja meta é um diploma como aquela que fornece habilidades (ou saberes específicos), respectivamente a formal e a informal; ambas se estendem ao longo da vida e competem com êxito, sendo estruturadas essencialmente para estimular duas capacidades fundamentais: pensar e comunicar-se com extrema clareza.

Menos braços e mais cérebro, a maior parte dos profissionais exerce tarefas que, basicamente, envolvem duas ações: aprender (identificando problemas, achando soluções) e agir (aplicando soluções). Chips —que estão saindo do laboratório e começando a ser usados— implantados no cérebro permitem a "entrega de conhecimento" quando solicitado, via satélite ou por outro meio sem fio, como no filme "Matrix".

O semestre desaparece; cursos duram horas, dias ou semanas (não necessariamente meses). Demonstração de capacidade intelectual e volitiva prevalece na seleção de alunos; a tecnologia avançada permite um aprendizado sob medida, numa escolha personalizada tanto do elenco de disciplinas como do sistema —presencial, a distância (TV ou internet) ou uma combinatória de ambos—, em instituições locais ou internacionais. Trabalhos em multimídia são majoritários. A internet promove cursos totalmente automatizados, sem a interferência direta de professores, com direito a diplomas de bacharelado e mestrado (como ocorre na Universidade de Southern Queensland, na Austrália).

Em todos os níveis, currículos são organizados em torno de grandes temas ou metáforas, como ciências da vida, artes do espetáculo, participação pública ou sociedade de aprendizado. Alunos e professores (de forma gratuita ou paga) têm acesso, via rede, aos pequenos e grandes repositórios de conhecimento do mundo. Com exceção de obras de ficção, não há por que comprar livros. Sob demanda, temos informação via e-book (livro eletrônico) e e-paper (folha que recebe da rede sinais elétricos, podendo ser apagada e reaproveitada).

Mas os espéculos multifacetados revelam seus contrários: renovações aceleradas e contínuas acabam por invalidar certas habilidades ou a memorização de informação factual. Tal como passaportes, diplomas têm validade efêmera, exigindo renovada comprovação de competência e de saber atualizado. A influência controladora de ministérios e secretarias de Educação é substituída por auto-regulamentação institucional, em bases regionais e internacionais.

Quando viro o telescópio/caleidoscópio à direita, observo um setor público com menos capacidade de sustentar uma educação gratuita exemplar, transferindo cada vez mais essa responsabilidade para empresas, ONGs e outros setores interessados em desenvolver recursos humanos.

Mas o futuro pode ser arruinado por seu próprio êxito: a homogeneização e a pasteurização educacional (sua "macdonaldização"), aparentemente mais econômica, mas sujeita a inesperadas consequências qualitativas ainda não mensuráveis.

Observo que, apesar da riqueza de oferta de variações educacionais, apenas 20% da sociedade aproveita plenamente as escolhas possíveis, enquanto 80% fica com opções convencionais (a chamada Lei de Pareto). Nem céu nem inferno, a educação que nos desafia utopicamente é, ao mesmo tempo, o reflexo e o determinador implacável da sociedade no futuro.

O norte-americano Fredric Michael Litto, 64, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP desde 1971, quando veio para o Brasil. É coordenador científico da Escola do Futuro, um laboratório de pesquisa que investiga as novas tecnologias de comunicação em aplicações educacionais (www.futuro.usp.br) e presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância (www.abed.org.br).

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