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29/07/2003 - 03h34

Agueda Bernardete Bittencourt: A escola sozinha não produz igualdade

AGUEDA BERNARDETE BITTENCOURT
especial para a Folha de S.Paulo

Sual escola ou que educação devemos ter daqui a 25 anos? Essa pergunta implica um exercício de futurologia pouco comum no mundo acadêmico ou uma prova para a imaginação. Sem me sentir à vontade em qualquer uma das posições para tratar da questão, prefiro navegar em águas mais conhecidas, pensar com a história.

No início dos anos 80, Bento Prado Jr. publicou "A Educação Pós-68 ou 100 Anos de Ilusão", em que analisa a escola e a educação no século que separou Friedrich Nietzsche de Pierre Bourdieu. Sua tese aponta um certo vazio no pensamento da educação no que diz respeito à forma escolar, desde a publicação das "Considerações Extemporâneas", nas quais Nietzsche aborda as impossibilidades de fazer filosofia na universidade, até os trabalhos de Bourdieu, Michel Foucault e Philippe Ariès. Todo discurso produzido em educação durante esse período (1868-1968) tratou de metodologia de ensino de teorias de aprendizagem, não havendo questionamentos sobre o lugar social da escola.

Temo que continuemos sem nos fazer as perguntas-chave, quando se trata de educação. Comecemos por nos perguntar o que ocorreu com a escolarização brasileira no último século.

Convivemos com um discurso corrente que trata a velha escola, aquela dos anos 40 ou 50, da qual muita gente ainda se lembra e fala como sendo a escola do seu tempo, como a boa escola. O mesmo discurso considera que a escola atual está cada vez pior. Afirma-se que, hoje, os jovens levam dez anos para aprender aquilo que antigamente se aprendia em três anos de escola.

Pois bem, o que de fato se dava com a escolarização dita de antigamente? Alguns alunos levavam mesmo três anos para aprender o que a maioria dos escolares da escola pública leva hoje dez anos. Entretanto, esquecemos de observar que aqueles que aprendiam em três anos eram os sobreviventes do sistema de ensino e que a expressiva maioria das crianças e jovens não entrava ou era expulso da escola.

Esse quadro se manteve por mais de meio século, e somente após os anos 60, quando expulsar criança da escola passou a ser algo constrangedor, quando não garantir vagas para todos passou a ser um problema de política internacional, é que a expulsão foi substituída pela evasão.

Em dez anos, o fenômeno da evasão tornou-se um novo escândalo. Estudos foram feitos para descobrir as causas dos espantosos índices de evasão e, na década seguinte, já se tinha claro que era o produto de reprovações consecutivas. Constatou-se que o aluno se evadia da escola apenas após duas, três ou mais reprovações e que, muitas vezes, ele ainda voltava. Dez anos se passaram, e os poderes públicos, em vários Estados, decretaram o fim da reprovação. O professor e a escola foram proibidos de reprovar os alunos. O problema foi até mote de campanha política para governador de Estado.

E agora, o que ocorre? As crianças e os jovens estão na escola, permanecem nela e recebem seus diplomas, mas não sabem o que deveriam saber ao deixar a escola. Descobriu-se que a escola não ensina, que os alunos não aprendem, que os professores não sabem, que nossos índices de desempenho estão entre os piores do mundo.

O que mudou na educação nacional durante todo o século 20? "Nada" pode ser a resposta. Apenas a contabilidade, o registro burocrático, é diferente. Passamos da expulsão pura e simples para a evasão, desta para a retenção e, agora, temos os baixos índices de desempenho escolar. A escola continua cumprindo o seu papel histórico de selecionar, classificar, distinguir, hierarquizar.

Eu me daria por feliz se, daqui a 25 anos, já tivéssemos compreendido que a educação e a escola são partes integrantes da cultura de um povo, que a escola não consegue produzir sozinha a igualdade quando a sociedade é desigual, excludente e injusta, que a escola é apenas um dos espaços de socialização e produção de cultura e, como tal, só pode pôr em circulação no seu interior o que está sendo produzido no conjunto da sociedade. Assim como cabe entender que os nossos professores não serão nem mais nem menos cultos ou ignorantes que a média da sociedade em que vivem.

Daqui a 25 anos, deveremos ter uma escola ainda em sintonia com os avanços sociais e culturais que formos capazes de gerar.

A catarinense Agueda Bernardete Bittencourt, 52, é doutora em educação. É diretora da Faculdade de Educação da Unicamp e professora da graduação e da pós. Coordena a equipe brasileira da Rede de Pesquisadores sobre Educação, Cultura e Política na América Latina —além do Brasil, a rede reúne pesquisadores do México, da Argentina e da Colômbia.

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