História de Mario Benedetti impulsiona obra sobre 'desexílio'

VICTOR HERINGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

ANDAIMES (bom)
TRADUÇÃO Mario Damato
QUANTO: R$ 44 (248 págs.)
AUTOR: Mario Benedetti
EDITORA: Mundaréu

"Democracia é amnésia", diz um personagem no início de "Andaimes", do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009).

Para um romance que trata de memória, história e política, é uma afirmação potente, que ressoa ao longo do livro. Javier, o protagonista, retorna ao Uruguai após anos na Espanha. Vai morar no litoral e retoma contato com velhos "camaradas" –na antiga expressão que usavam e que, na volta, já caíra em desuso.

É um desses amigos que, numa visita, lhe oferece a máxima que dará tom à narrativa. Democracia é amnésia.

A história é reconhecível para qualquer latino-americano. Depois do golpe militar de 1973 no Uruguai, a esquerda começa a se mobilizar na clandestinidade e seus membros são perseguidos, presos, torturados e mortos. Para muitos, a saída é o exílio.

Em sua longa fuga, Javier percorre o continente americano, quase inteiramente subjugado por ditaduras, e por fim se estabelece em Madri.

A jornada do exilado é uma espécie de "Odisseia" às avessas, cujo destino final é a terra estrangeira, enquanto sua Ítaca, abandonada aos inimigos, se transforma sem que o herói seja capaz de intervir.

A volta –ou, no termo de Benedetti, o "desexílio"– é outro tipo de jornada, pois se dá nas vielas da memória.

Javier é obrigado a cotejar sua história com a de seu país. Suas convicções políticas, embora alteradas pela experiência do exílio, confrontam-se com o Uruguai contemporâneo: a economia neoliberal, as privatizações, a derrocada do orgulho ideológico.

A praia em que foi viver, antes chamada "El Arrayán" ("murta", em espanhol), transformou-se em "Nueva Beach". Os marxistas do passado que renegam Marx abundam. Todo o espectro político se move ao centro: "agora tem proliferado outro tipo de silenciosos, que sabem ficar calados em três ou quatro ideologias".

A trama ecoa a experiência do próprio Benedetti, que em 1973 era diretor do departamento de literatura hispano-americana na Faculdade de Humanidades e Ciências de Montevidéu e renunciou ao cargo após o golpe.

O jornal em que trabalhava, "Marcha", foi fechado pelo regime em 1974. Forçado a se exilar, percorreu, como seu protagonista, um longo caminho: Argentina, Peru, Cuba e, enfim, Espanha, onde se estabeleceu. Só voltou ao Uruguai após a redemocratização.

Como explica no "Andaime Preliminar", sua experiência foi impulso, mas tirou poucos acontecimentos específicos de sua própria vida. "Não se trata de uma autobiografia", diz, "mas de um puzzle de ficção" ordenado em "andaimes", para erguer uma realidade inventada, ainda que bem próxima dos fatos históricos e do Benedetti que existiu.

A amnésia da democracia latino-americana é também a dificuldade do sujeito histórico de construir sobre as ruínas da memória.

Porém, com os andaimes que constroem Javier, talvez também seja possível construir uma democracia.

VICTOR HERINGER é escritor, autor de "O Amor dos Homens Avulsos" (Companhia das Letras), entre outros.

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