DE SÃO PAULO

Carlos Heitor Cony, morto na noite desta sexta-feira (5), escreveu na Folha durante quase 30 anos. Sua primeira coluna saiu em 1993.

De lá até aqui, exercitou sua pena de cronistas nos mais variados temas: a política, a lembrança dos amigos, a religião e a simples observação lírica do mundo. Mila, sua cadela cuja morte o fez voltar a se dedicar à literatura —Cony dizia escrever para poder suportar os gemidos dela— também foi tema de uma crônica apaixonada.

Abaixo, uma seleção de textos marcantes publicados por Cony no jornal.

Baderneiros de ontem e de hoje | Mila | A meio pau | A hard day's night | O barril e a esmola | Carta para a moça aos prantos | O muro de Nova York | Moça em Estado de Graça | Uma pomba no meio do caminho | O pintor que foi jornalista e escritor | Lembranças do Francis

Memória
Carlos Heitor Cony morre aos 91 anos no Rio

Baderneiros de ontem e de hoje
2 de outubro de 1993

Caíram em cima dos deputados que tentaram impedir uma ilegalidade do presidente da Câmara. Tentaram não: conseguiram impedir, ao menos na primeira batalha da guerra perdida. Não foi espetáculo edificante, mas não havia alternativa. São Tomás de Aquino diria que os deputados baderneiros estavam possuídos da "ira bona", necessária para garantir o direito e a lei feridas.

Aprecio a expressão "baderneiro". Os mesmos jornais que dão esse nome aos deputados foram os mesmos que, em 1965, chamaram de baderneiros alguns intelectuais que protestavam contra a ditadura, em frente ao Hotel Glória, no Rio.

O grupo decidira, mesmo sob o risco de prisão —que acabou ocorrendo—, denunciar o autoritarismo do regime militar. Para isso, aproveitou a assembléia da Organização dos Estados Americanos (OEA), cujos estatutos proibiam reuniões em países não-democráticos. O governo Castello Branco trabalhou nos bastidores e descolou a reunião que coonestaria a ditadura. Contra isso, o grupo de intelectuais promoveu um ato de protesto na rua.

Alceu Amoroso Lima comparou a manifestação dos 9 do Glória aos 18 do Forte —um exagero de mestre Tristão. Mas deu para compensar a pauleira que o grupo receberia, primeiramente da segurança presidencial, mais tarde da imprensa comprometida com a causa da ditadura.

Foram chamados de baderneiros, com grande destaque nas primeiras páginas, os cineastas Glauber Rocha, Joaquim Pedro e Mário Carneiro, o teatrólogo Flávio Rangel, o embaixador Jaime Azevedo Rodrigues, os escritores Antônio Callado, Thiago de Mello, Márcio Moreira Alves e o escriba dessas mal traçadas. Com exceção deste último, gente fina.

Os mesmos jornais agora repetem a dose em cima dos deputados que tentaram impedir a baderna promovida pela mesa da Câmara. Seria eu o último apologista da violência, mas há um tipo de baderna localizada que pode retardar a baderna do arbítrio total.

Mila
4 de junho de 1995

Era pouco maior do que minha mão: por isso eu precisei das duas para segurá-la, 13 anos atrás. E, como eu não tinha muito jeito, encostei-a ao peito para que ela não caísse, simples apoio nessa primeira vez. Gostei desse calor e acredito que ela também. Dias depois, quando abriu os olhinhos, olhou-me fundamente: escolheu-me para dono. Pior: me aceitou.

Foram 13 anos de chamego e encanto. Dormimos muitas noites juntos, a patinha dela em cima do meu ombro. Tinha medo de vento. O que fazer contra o vento?

Amá-la -foi a resposta e também acredito que ela entendeu isso. Formamos, ela e eu, uma dupla dinâmica contra as ciladas que se armam. E também contra aqueles que não aceitam os que se amam. Quando meu pai morreu, ela se chegou, solidária, encostou sua cabeça em meus joelhos, não exigiu a minha festa, não queria disputar espaço, ser maior do que a minha tristeza.

Tendo-a ao meu lado, eu perdi o medo do mundo e do vento. E ela teve uma ninhada de nove filhotes, escolhi uma de suas filhinhas e nossa dupla ficou mais dupla porque passamos a ser três. E passeávamos pela Lagoa, com a idade ela adquiriu ``fumos fidalgos", como o Dom Casmurro, de Machado de Assis. Era uma lady, uma rainha de Sabá numa liteira inundada de sol e transportada por súditos imaginários.

No sábado, olhando-me nos olhos, com seus olhinhos cor de mel, bonita como nunca, mais que amada de todas, deixou que eu a beijasse chorando. Talvez ela tenha compreendido. Bem maior do que minha mão, bem maior do que o meu peito, levei-a até o fim.

Eu me considerava um profissional decente. Até semana passada, houvesse o que houvesse, procurava cumprir o dever dentro de minhas limitações. Não foi possível chegar ao gabinete onde, quietinha, deitada a meus pés, esperava que eu acabasse a crônica para ficar com ela.

Até o último momento, olhou para mim, me escolhendo e me aceitando. Levei-a, em meus braços, apoiada em meu peito. Apertei-a com força, sabendo que ela seria maior do que a saudade.

A meio pau
26 de dezembro de 1996

Amaldiçoada como uma cidade bíblica coberta de ignomínia e pecado, o Rio talvez nem merecesse a provação final deste ano: justo quando as árvores acesas quebram a treva de nossas noites, quando todos se preparam mais uma vez para as grandes festas —a fatalidade se abate sobre nós em forma de decreto municipal que nos condena ao luto pela morte do Macaco Tião.

Deus é testemunha de que não tenho nada contra os macacos, muito menos pelo Tião, que mereceu o voto de 400 mil cariocas numa eleição recente. Não me lembro se votei nele, acho que não, estou em dúvida, sempre voto em gente que não é eleita, e o nosso Tião, apesar da excelente performance eleitoral, não chegou lá.

Tão lamentável quanto a morte dele foi a prova de incivilidade e desrespeito do povo carioca que não cumpriu satisfatoriamente o decreto do nosso alcaide. Não vi bandeiras a meio pau —como é costume e lei. Fiquei de passar pelo Palácio da Cidade e pela casa do prefeito para ver se, ao menos nessas cidadelas cívicas, o dispositivo legal do nosso luto estava sendo cumprido. Mau cidadão e deplorável munícipe, preferi curtir os amigos em boas rodadas de uísque e comidas: Jorge Zahar e família, Millôr, Chico Caruso, Janio, Sérgio Augusto, Ruy, João Máximo, João Luiz.

Cito-os nominalmente para entregá-los ao opróbrio: também eles se lixaram para o luto oficial decretado pelo alcaide Maia. Justo na hora em que o Tião, acompanhado pelo pranto solitário do prefeito, baixava à mãe-terra, nós bebíamos e comíamos alacremente.

Nos tempos autoritários, o governo brasileiro também decretou luto oficial pela morte do Papa Doc. Tirante as carpideiras de sempre, que choraram e botaram bandeiras a meio pau, foi obsceno o desprezo do povo brasileiro à dor que a morte do ditador do Haiti provocou nos círculos oficiais. Temos muito a aprender em matéria de cidadania.

A hard day's night
12 de dezembro de 1998

Encostava o carro na garagem do prédio onde morava, no Leme, quando um desconhecido se aproximou e me comunicou que o general Sizeno Sarmento, comandante da Região Militar, desejava falar comigo.

A primeira reação foi estranhar o convite: ''A esta hora?'' (eram 11 e meia da noite de 13 de dezembro de 1968). O desconhecido disse que sim. Quatro outros desconhecidos rodearam meu carro. Percebi do que se tratava (seria a terceira prisão de uma série de seis).

''Não tenho nada a falar com o general. Não o conheço, nem ele me conhece. Deve haver algum engano'' —eu sabia que aquilo não adiantava, mas queria ganhar tempo para procurar entender o que estava acontecendo.

O desconhecido abriu a porta do meu carro e mudou o tom da voz: ''Vamos andando que o general tem pressa''.

Uma Kombi saiu das entranhas da garagem (desde cedo estava ali à minha espera). Os quatro desconhecidos tinham armas na cintura, um deles exibia uma pequena metralhadora suplementar e a apontou para mim: ''Vamos indo''.

Perguntei se podia dar um pulo em casa, avisar a família, apanhar algumas coisas. Não. Que eu fosse inteligente e não dificultasse as coisas. Seria melhor para todos.

Na Kombi, me enfiaram um capuz escuro que cheirava a suor e a saco de algum cereal não identificado. Quando o tiraram, meia hora depois, estava num enorme pátio de quartel. Um coronel se apresentou e delicadamente pediu desculpa pelas instalações. Um aspirante conduziu-me à cela. Com entusiasmo, me comunicou que naquela noite seriam fuzilados Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e outros comunistas.

''Tem um lá na cela esperando por você.''

A cela era enorme, fracamente iluminada. Num catre, com febre de 39 graus, Joel Silveira fez uma pergunta que já era uma resposta: ''O que estamos fazendo aqui?''.

O barril e a esmola
5 de janeiro de 2000

Zombavam de Diógenes. Além de morar num barril, volta e meia era visto pedindo esmolas às estátuas. Cegas por serem estátuas, eram duplamente cegas porque não tinham olhos —uma das características da estatuária grega. Pela forma é que se penetrava na alma das estátuas, não pelos olhos.

Perguntaram a Diógenes porque pedia esmola às estátuas inanimadas, de olhos vazios. Ele respondia que estava se habituando à recusa. Pedindo a quem não o via nem o sentia, ele nem ficava aborrecido pelo fato de não ser atendido.

É mais ou menos uma imagem que pode ser usada para definir as relações entre a sociedade e o poder. Tal como as estátuas gregas, o poder tem os olhos vazados, só olha para dentro de si mesmo, de seus interesses de continuidade e de mais poder.

A sociedade, em linhas gerais, não chega a morar num barril. Uma pequena minoria mora em coisa mais substancial. A maioria mora em espaços um pouco maiores do que um barril. E há gente que nem consegue um barril para morar, fica mesmo embaixo da ponte ou por cima das calçadas.

Morando em coisa melhor, igual ou pior do que um barril, a sociedade tem necessidade de pedir não exatamente esmolas ao poder, mas medidas de segurança, emprego, saúde e educação. Dispõe de vários canais para isso, mas, na etapa final, todos se resumem numa estátua fria, de olhos que nem estão fechados: estão vazios.

Pupilas vazadas que nada olham. Ou que olham errado —como no caso de Maria Antonieta, que sugeriu ao povo comer brioches à falta de pão.

Não sei por que lembrei o cinismo sábio de Diógenes e o cinismo burro de Maria Antonieta. Acho que têm a ver com um tipo de cinismo que nem é sábio nem burro. É apenas um cinismo que só não é inútil porque é cruel.

Carta para a moça aos prantos
22 de junho de 2000

Ela diz que chora muito. Tem a detestável fraqueza de certas mulheres, que vulgarizam a lágrima e banalizam o pranto. Mas sempre há pranto e pranto, duas lágrimas nunca são iguais. Cada qual tem o seu motivo e o seu peso. Cada qual é salgada de forma diferente.

Ela reclama que sempre chega tarde. Apesar de moça, considera-se retardatária. Decidiu estudar medicina após dois anos de direito e dois de comunicação. Não está satisfeita e pensa em estudar outra coisa, sabendo que, seja qual for a sua escolha, estará chegando tarde.

Se assim tem sido sua vida escolar, a vida sentimental não é muito diferente. Começou namorando um colega de vestibular, mas acabou amando um professor dez anos mais velho. Ia casando com o professor que era solteiro, mas se descobriu atraída por um músico de sua idade que já era casado.

Para piorar, quando fez 25 anos perdeu a esperança de uma porção de coisas e assumiu o que ela considera o seu ''karma'' —nome oriental e sofisticado para a banal desgraça que conhecemos.

Karma ou desgraça lhe apareceram na forma de um homem bem mais velho do que o primeiro e mais casado do que o segundo, pois na realidade, tinha uma mulher no Rio e outra em São Paulo.

Ela me escreveu, achando que eu podia lhe enviar uma carta e uma solução. Na pior das hipóteses, um conselho. Diz que vive aos prantos, é moça e acha que tem o direito de ser feliz.

Tenho preguiça de escrever, dá trabalho, uso às vezes os e-mails, considero-os frios, impessoais. Mas fiquei preocupado com a moça e com o seu pranto. Nem tenho conselho a dar, muito menos uma solução. Ela veio pedir roupa a um esfarrapado, comida a um faminto. A um homem que não acredita em cartas e já perdeu o direito ao pranto.

O muro de Nova York
13 de setembro de 2001

O Muro de Berlim foi diferente. Feito de concreto, impedia que os de dentro fugissem. Quando caiu, parecia que a história havia acabado. E ela mal havia começado.

O muro de Nova York será feito, agora, com material menos prosaico e mais sofisticado. Varredura eletrônica, radares potentíssimos e, sobretudo, uma logística de fiscalização que nunca houve igual na história. Ao contrário do Muro de Berlim, sua finalidade é impedir a entrada de indesejáveis.

Quais serão os indesejáveis? Em princípio, todos nós, incluindo os próprios norte-americanos que por isso ou aquilo pareçam não estar satisfeitos com a vida ou consigo mesmos.

Repito o que escrevi ontem: a escalada terrorista não mudou de grau, mudou de gênero. É a nova modalidade da guerra entre interesses e vontades contrárias, que começou com o arco e a flecha e terminou com a bomba atômica. E, justamente por isso, tornou-se inviável para povos e sociedades sem tecnologia suficiente para enfrentar adversários infinitamente mais fortes.

Um escudo espacial, que levaria a guerra convencional às estrelas, um porta-aviões capaz de destruir um continente, ogivas nucleares direcionadas para centenas de cidades, tudo isso ficou obsoleto. São armas da guerra comum, que, umas pelas outras, se destroem mutuamente.

O ato dito terrorista, promovido a ação de combate, pode usar facas —como parece ter acontecido na manhã de terça-feira. Facas que renderam tripulantes de dois aviões.

Tão dramáticas como as fotos do desabamento das torres do World Trade Center foram as fotos de nova-iorquinos cobertos de poeira e fuligem, que pareciam sair de um mundo em chamas, retirantes que fugiam da morte.

O Muro de Berlim foi símbolo e expressão da Guerra Fria. O muro de Nova York será símbolo e expressão de uma guerra que ficará cada vez mais quente.

Moça em Estado de Graça
23 de outubro de 2003

Autoridades do governo norte-americano insistem em avisar que, na atual guerra contra o Iraque, o mundo verá coisas que nunca viu em matéria de eficiência e de força. O estágio tecnológico dos Estados Unidos, acredito, tem condições de promover um show de destruição e de morte apocalíptico, no estilo hollywoodiano do "você jamais verá um filme como esse".

Um dos lances mais espetaculares com que Bush contava para encenar seu espetáculo seria realmente espetacular —gosto dos pleonasmos quando me parecem necessários. No primeiro minuto da guerra, praticamente no primeiro míssil a ser disparado, tudo estaria terminado com a morte de Saddam Hussein.

A CIA, infiltrada na guarda pessoal do ditador iraquiano, daria o sinal para o disparo na certeza de que Saddam estaria naquele local e àquela hora.

A façanha seria possível. É evidente que os agentes secretos, duplos ou não, rastreiam a intimidade do ditador. A quilômetros de distância, com visibilidade zero, de um navio fundeado no golfo Pérsico, Saddam poderá ser alvejado facilmente, como uma xícara indefesa na barraquinha de tiro ao alvo de um parque de diversões.

Seria um show, realmente. Dois minutos depois de declarar que a guerra começara, Bush comunicaria que a guerra acabara, uma vez atingido o objetivo único do atual conflito: a eliminação física de um ditador.

Alguma coisa deu errado —ou na informação da CIA, ou na pontaria dos mísseis. Lembrei aquela imagem usada pelo ex-presidente Collor, que garantia acabar com o tigre da inflação com um só golpe. Todos sabemos o que aconteceu.

Bush tem um arsenal maior e mais variado para acabar com o seu tigre de plantão. Bem verdade que não conseguiu acabar com Bin Laden, um tigre bem mais perigoso para a merecida tranquilidade dos americanos tranquilos —e aí está mais um pleonasmo.

Uma pomba no meio do caminho
7 de novembro de 2002

A tarde pedia. Uma dessas tardes de céu limpo e luz dourada, sem calor. Ali no aterro, a baía parecia realmente a foz de um imenso rio de águas azuis que caminhava para o mar.

Eles nada tinham a fazer a não ser aproveitar a tarde. E aproveitavam-na como gostavam, de braços dados e amigos, caminhando pelas alamedas vazias àquela hora. Haviam deixado o carro e os compromissos no estacionamento e a distância, queriam estar juntos e juntos estavam, e sozinhos.

Mas, no meio do caminho, onde não havia pedra, havia uma pomba. Uma pomba desgarrada, talvez ferida ou fatigada, que ali se postara, aproveitando, também ela, a sombra da tarde e do silêncio.

A moça foi a primeira a ver a pomba. Outra moça qualquer teria apenas olhado, ou dito qualquer coisa gentil ou interessante, "olha a pomba, parece cansada, talvez esteja ferida...".'

Ela não. Ela era ela, a ventania em potencial, a fúria recolhida, a explosão em breve repouso. Tinha sempre uma frase rápida e ríspida, surpreendente até mesmo para ele, que também tinha frases inesperadas e muitas vezes brutais.

Certa vez, ele estava lendo um livro, no quarto do hotel, em Los Angeles, junto ao frigobar. Ela reclamou da distância dele dizendo: "Por que não bota o livro na geladeira?".

Um livro na geladeira, só mesmo na cabeça dela. E agora a pomba à sua frente, no meio do caminho, como uma pedra exausta.

"Dê um chute nela!" —foi o que disse, no mesmo tom em que havia dito "bote o livro na geladeira!". Nenhuma maldade, nada contra o livro ou a pomba, apenas a vontade de estar com ele sem pomba e sem livro.

Ele compreendeu. Evidente que não iria dar um chute imbecil numa pomba arruinada, que voou quando os dois se aproximaram.

Estava realmente ferida, voou pouco, mas o bastante.

O pintor que foi jornalista e escritor
23 de maio de 2003

Nota da Redação: Cony escreveu a coluna a seguir em resposta a uma mensagem enviada pelo jornalista Matheus Pichonelli, hoje autor de um blog no UOL. Em seu relato: "Uma vez pedi uma entrevista para falar sobre a relação entre jornalismo e literatura. Ele disse que responderia as perguntas na coluna de sexta, na 'Ilustrada'. Foi uma das melhores coisas que li na vida —e talvez o maior presente para quem começava a se aventurar nas letras, entre tropeços, soluços e a vaidade de conversar com um ídolo.

Uma das perguntas mais recorrentes que me fazem, em cartas, e-mails e pessoalmente, nos encontros promovidos com estudantes, é sobre a relação entre a literatura e o jornalismo —um tema que, se não me engano, já abordei perifericamente em outros artigos, pois preocupa muita gente.

Há motivos para a curiosidade. Afinal, tanto o jornalista como o autor literário utilizam basicamente o mesmo instrumento, que é o conjunto de letras que forma a palavra e o conjunto de palavras que forma a frase. Contudo, se o instrumento é o mesmo, o uso e o modo são diferentes, até mesmo antagônicos. Há flores que enfeitam a vida, há flores que enfeitam a morte —dizia o poeta. E sinos que alegram as manhãs do Senhor são os mesmos que dobram em finados.

Com perdão da imagem acima, a flor e o sino, a palavra é material plástico demais, serve para tudo e para nada. O jornalista dela se utiliza, primariamente, para dar uma informação ou uma opinião. A previsão do tempo, a cotação do dólar, o cachorro que mordeu a criança, o político que vai mudar de partido, o ator que foi atropelado, o filme que fulano está fazendo, as alterações no Imposto de Renda, o novo vestido que fulana vai usar —tudo isso é informação e precisa de uma técnica e de um espaço próprios para ser avaliada pelos editores e transmitida ao leitor.

No jornalismo atual, sem os vícios literários de outros tempos, o texto tem de ser profissional, obedecendo a critérios próprios. Daí que todos os textos acabam se parecendo. E, quanto mais parecidos, melhores são, pois o que fica importando é o conteúdo, o dólar em alta ou em baixa, o político que faz isso ou aquilo, o filme que custará tanto e será bom ou mau.

Usando o mesmo material, a literatura dispensa qualquer contaminação com a realidade, com o sonho, com as regras, com a utilidade. Como disse Sartre, a arte é uma generosidade inútil. Se alguém se beneficia ou lucra com ela, tudo bem. É um subproduto. Sua finalidade é outra, despreza a informação -chega mesmo a informar errado propositadamente— e não se obriga a emitir qualquer opinião. Seu objetivo é outro: o clima, o subjacente, o que não é dito e muitas vezes nem chega a ser insinuado, mas tem de ser adivinhado pelo usuário.

Paralela a essa distinção de uso e finalidade, jornalismo e literatura podem se conflitar e ajudar, dependendo de diversas variantes. O mais comum é considerar o jornalismo um modo de fazer literatura ou subordinar a literatura a um modo do jornalismo. Em ambos os casos, o produto é híbrido, não chega a ser boa literatura nem bom jornalismo. Cada macaco no seu galho —acho que o velho ditado nasceu de um escritor que fazia jornalismo ou o contrário, de um jornalista que tentava ser escritor.

Limitando a questão ao Brasil, sua literatura e seu jornalismo, é impressionante (e confuso) o número daqueles que exerceram, eventual ou permanentemente, as duas funções. Bem verdade que, antigamente, jornalista era todo aquele que escrevia em jornal: artigos, ensaios, comentários, resenhas, crônicas, críticas e reportagens. Até hoje, quando se diz que fulano é escritor e jornalista, a classificação de jornalista fica por conta das colaborações feitas nos jornais. Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade sempre escreveram para jornais, mas seriam incapazes de fazer um lide, de condensar num título o importante da informação ou da opinião.

Na realidade, como escritores, eles se lixavam para a informação e a opinião. O que lhes importava era a visão de mundo que haviam criado, o gosto ou desgosto da condição humana em sua essência, e não em seus acidentes factuais. Mas, para todos os efeitos, eram escritores e jornalistas.

Como em outras partes ao longo da história e da geografia, o ofício de escritor geralmente não dá para o sustento básico de cada um. Swift foi juiz, Tolstói, fazendeiro no fim e soldado no início, Kafka, bancário, Eça, diplomata, Machado de Assis, funcionário. Nada de mais que seja grande o número daqueles que, não sendo magistrados, fazendeiros, bancários, diplomatas e funcionários, apelem para o ofício de jornalista pelas afinidades periféricas da função: lidam com as palavras, formam frases e têm a impressão de formar opinião, uma opinião setorizada, sujeita a chuvas e trovoadas da circunstância e do sistema de poder em cada redação.

Já o escritor, mesmo que seja jornalista profissionalizado, tem o recurso usado por Goya, que não era jornalista nem escritor, mas pintor. Como artista contratado pelo rei da Espanha, ele pintava tudo o que lhe pediam, retratava o soberano, a rainha, os príncipes, os folguedos da corte, as grandes damas da época. Fora de suas funções oficiais, ele conseguia expressar seu mundo interior, sua visão goyesca da vida —e lá estão, na Quinta del Sordo, seus dibujos famosos, Saturno devorando seu filho, o sonho da razão produzindo monstros.

Nos dois modos, ele usou o mesmo material: o desenho, a cor, o quadro. E em ambos deixou a lava do vulcão que o consumia.

Lembranças do Francis
7 de fevereiro de 2012

Vi no Canal Brasil o documentário sobre o 15º aniversário da morte do jornalista Paulo Francis. Bom programa, inclusive com o final wagneriano de "Tristão e Isolda", talvez seu trecho lírico preferido.

Ele foi um dos personagens mais instigantes de nosso meio cultural e marcou época na segunda metade do século 20. Eu estava em Roma quando ele morreu em Nova York e confesso que me senti um pouco perdido.

Foi o primeiro leitor dos originais de alguns romances que publiquei. Polêmico, às vezes contraditório e sempre brigão, tinha duas faces: a do intelectual superdotado, que se exaltava, odiando, como Horácio, o vulgo e o profano, e o homem mais do que educado e gentil, desses que raramente encontramos, que não existem mais.

O Luiz Schwarcz lembrou a amizade que Paulo dedicava aos amigos. Num fim de semana, sabendo que Jorge Zahar, doente, estava deprimido, tomou um avião na sexta. No sábado, apanhou amigos comuns (Ruy e Millôr) e levou-os a fazer companhia ao editor, que morreria pouco depois. No domingo à noite, embarcou de volta para Nova York. Passou um de seus últimos fins de semana integralmente ao lado de um dos amigos que mais admirava.

Todos os que tiveram sua amizade podem contar episódios iguais. Seu último jantar no Rio foi em minha casa, em companhia do Ruy. Levei-o ao hotel em Copacabana. Ao saltar, não se esqueceu daquela cortesia que quase ninguém usa mais: pediu que eu agradecesse à minha mulher o modesto jantar que lhe oferecemos.

Em 1965, oito amigos seus foram presos em frente ao hotel Glória. Ao saltarmos no quartel, Glauber Rocha apontou para a calçada: "Olha, o Paulo Francis!" Ele nos acompanhara à distância, solidário, temendo que fossemos maltratados.

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