Em romance policial, sueco faz de vida de Alan Turing uma trama 'noir'

Crédito: Divulgação O ator Benedict Cumberbatch na pele do matemático Alan Turing no filme "O Jogo da Imitação"
O ator Benedict Cumberbatch na pele do matemático Alan Turing no filme "O Jogo da Imitação"

REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

A MORTE E A VIDA DE ALAN TURING (bom) * * *
AUTOR David Lagercrantz
TRADUTOR Rogério Galindo
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 35,90 (408 págs.)

Os detalhes improváveis da vida do matemático Alan Turing (1912-1954) parecem ter saído de uma narrativa "noir": o gênio excêntrico cuja mente fora do comum ajudou a derrotar os nazistas, perseguido por sua homossexualidade; o suicida que, inspirado em "Branca de Neve e Os Sete Anões", morreu ao comer uma maçã envenenada que ele próprio fabricara.

O escritor sueco David Lagercrantz —continuador da saga Millennium após a morte prematura de seu conterrâneo Stieg Larsson (1954-2004)— resolveu levar a sério as semelhanças entre a realidade e o gênero de ficção ao escrever um romance policial sobre o suicídio de Turing.

Suicídio? Bem, essa é a conclusão mais comum entre os biógrafos do pesquisador britânico, considerado um dos pais da ideia de inteligência artificial (a analogia deliberada com "Branca de Neve" é um pouco mais incerta).

Mas a ambiguidade é um dos nutrientes indispensáveis às narrativas "noir", e Lagercrantz, ex-repórter policial da revista "Expressen", emprega doses consideráveis de incerteza e duplicidade ao longo de "A Morte e a Vida de Alan Turing", romance publicado originalmente em 2009.

(O livro é de cinco anos antes, portanto, de "O Jogo da Imitação", filme vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado e indicado a outras sete estatuetas na premiação, inclusive a de melhor ator para o britânico Benedict Cumberbatch no papel de Turing).

Não é que Lagercrantz tente subverter a hipótese do suicídio e transformar a morte de Turing numa queima de arquivo conduzida pelo governo britânico.

O que o autor sueco faz é recriar o clima de preconceito e paranoia dos anos 1950. À época, funcionários públicos gays eram considerados, além de criminosos, um problema de segurança nacional no Reino Unido; acreditava-se que poderiam sofrer chantagens por parte de agentes comunistas ou de outros inimigos do Estado.

Num ambiente como esse, seria a coisa mais fácil do mundo associar o silêncio governamental sobre a participação do matemático no esforço de guerra (Turing ajudou a decifrar os códigos de comunicação da Alemanha nazista) com sua homossexualidade e seu fim trágico.

ESPELHO

Quem tenta ligar os pontos é um personagem ficcional, o detetive Leonard Corell, da pequena cidade de Wilmslow.

Corell é o primeiro a examinar o corpo inerte do matemático e, daquele momento em diante, Turing se transforma numa espécie de espelho para aspectos soterrados da sexualidade e das ambições intelectuais do policial, membro de uma família aristocrática que perdera quase tudo.

Mesmo depois que a investigação oficial sobre a morte do gênio se encerra, Corell não cessa de tentar entender os estranhos efeitos da terapia hormonal contra a homossexualidade que Turing foi forçado pela Justiça britânica a adotar ou as repercussões filosóficas e práticas da ideia de que máquinas também poderiam ser capazes de pensar.

Em conversas com amigos do pesquisador, o detetive, a contragosto, transforma-se num admirador de Turing.

É nesse ponto que o romance, além da recriação habilidosa da atmosfera opressiva da Guerra Fria, adquire ares de uma história narrativa das ideias, surpreendentemente instigante e precisa.

Se por vezes o texto resvala em alguns esquematismos —como o estereótipo de que haveria uma associação natural entre homossexualidade e ideias brilhantes e pouco convencionais—, o conjunto do livro é mais do que compensador.

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