Artigo de Deneuve me entristeceu, afirma ativista Caroline de Haas

Crédito: Joel Saget/AFP A ativista Caroline de Haas
A ativista Caroline de Haas

DIOGO BERCITO
DE MADRI

Ao ler o recente artigo assinado pela atriz francesa Catherine Deneuve, a ativista Caroline de Haas, 37, entristeceu-se. "Como quando nós estamos com a nossa família ou com os nossos amigos e eles falam alguma idiotice sobre a igualdade de gênero", ela diz à Folha.

Haas, que em 2009 fundou a organização Osez le Féminisme! (ousem ser feministas), afirma que a onda de denúncias contra o abuso sexual é uma "revolução" e que, portanto, não a surpreende reações como a de Deneuve. "Há sempre quem diz 'isso é muito, vá mais devagar."

Deneuve e outras mulheres, incluindo a crítica de arte Catherine Millet, haviam defendido no jornal "Le Monde" a liberdade dos homens de "importunar" as mulheres. Reconhecendo que o estupro é crime, disseram porém que "paquerar de maneira insistente não é delito".

Deneuve, Millet e as demais signatárias disseram haver um movimento "puritano" que sanciona homens cujo "único erro foi ter tocado um joelho, falado coisas 'íntimas' durante um jantar profissional". "Não nos reconhecemos nesse feminismo."

O artigo de Deneuve, diz Haas, "envia uma mensagem clara às mulheres que são vítimas da violência: calem-se". "Isso é perigoso. Nós precisamos que as pessoas ouçam os gritos das mulheres."

Folha - Catherine Deneuve e outras mulheres publicaram um artigo na última semana dizendo que o movimento #MeToo é influenciado por puritanismo. Isso surpreende?

Caroline de Haas - Não me surpreendeu. Toda as vezes em que os direitos das mulheres progrediram vimos esse tipo de reação, como o artigo de Catherine Deneuve. Mas me entristeceu –como quando estamos com a nossa família ou com nossos amigos e eles falam alguma idiotice sobre a igualdade de gênero.

É sempre o mesmo argumento, o que não é original. São estereótipos, e não a realidade. Por exemplo, quando dizem que há ódio contra os homens, o que não é verdade.

A carta me entristeceu também porque envia uma mensagem clara às mulheres que são vítimas da violência: calem-se. Isso é algo perigoso. Nós precisamos (na França, no Brasil e em todo o mundo) que as pessoas ouçam os gritos das mulheres e essas celebridades [francesas] estão usando a sua fama para dizer que as mulheres se calem...

A senhora diz que há sempre esse tipo de reação. Por quê?

Porque a igualdade de gênero não é uma pequena mudança. É uma revolução. É algo bastante grande. Se nós tivermos sucesso, vamos mudar toda a sociedade: o trabalho, as relações, a política, a imprensa. Quando um grupo diz que quer fazer uma revolução, há sempre quem diz "meu Deus, isso é muito agressivo. É demasiado, vá devagar".

Críticos como Deneuve e Catherine Millet sugerem que os homens têm o direito de flertar livremente com mulheres e que a campanha do #MeToo está indo longe demais. Concorda?

Eles estão misturando nisso duas coisas que são muito diferentes: a sedução e a violência. Uma relação normal entre um homem e uma mulher é baseada em igualdade e em respeito. A violência não é um "flerte plus plus". Não é um "flerte maior". É outra coisa.

É uma relação baseada em desigualdade e dominação. É perigoso misturarmos ambas as coisas porque, quando você faz isso, diz que a violência não é tão ruim. Que não é grave.

Eles estão errados quando dizem que essa campanha afeta a liberdade sexual.

A violência contra as mulheres impossibilita que exista uma sociedade em que elas sejam livres.

Parte da crítica ao #MeToo é a de que o movimento retrata as mulheres como indefesas, ao descrevê-las repetidamente como vítimas.

Não acho que ser vítima seja um insulto. Nós não estamos dizendo que uma mulher é uma pobrezinha, apenas que é uma vítima, e não é a mesma coisa. Uma vítima é uma pessoa que foi ferida, como as pessoas no atentado ao Bataclan, em Paris [ataques no dia 13 de novembro de 2015 na casa de shows deixaram 89 mortos].

"Vítima" não é uma palavra ruim. É muito estranho que, para esses críticos, ser uma vítima impossibilite alguém de ser uma mulher forte. Não concordo com isso. Há muitas mulheres que foram estupradas na França e que são fortes. Podemos ser ambos. Vítimas e fortes. Eu fui vítima de abuso 15 anos atrás, mas sou forte. Me ergui e hoje sou uma ativista.

Com as recentes campanhas, existe a impressão de que há avanços. A senhora concorda?

Sim. É incrível como as campanhas causaram uma mudança profunda e importante na nossa sociedade. Acho que, na França, as pessoas ainda não perceberam a mudança enorme que estamos vivendo. Causa bastante entusiasmo às mulheres e às feministas.

Mas nós temos um problema na França com as políticas públicas. Esse tipo de mudança tem que ser acompanhado por um engajamento do Estado para reformar as leis e cumpri-las. Temos de fato ótimas leis, mas elas não são aplicadas na realidade. A prioridade agora tem de ser investir na igualdade de gênero e criar novas ferramentas.

Por que exatamente agora? Por que o #MeToo ganhou tanto fôlego no ano passado?

Não sei. Mas houve outras mudanças rápidas no passado. No caso DSK [Dominique Strauss-Kahn, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional acusado em 2011 de agressão sexual] houve muita mobilização contra a violência e uma conscientização sobre a questão. Acho que o movimento do #MeToo está acelerando o debate, mas não é o fim do problema.

Não houve grandes denúncias na França recentemente, em comparação com os EUA.

Temos um problema, e eu não estou segura de que sei qual é a explicação para isso. É algo que me enfurece, porque existem casos de violência sexual. Eles só não estão na mídia.

A senhora liderou boicotes contra uma retrospectiva da obra do cineasta franco-polonês Roman Polanski, acusado de estuprar uma menor nos Estados Unidos. À época se argumentou que não se pode misturar arte e artista.

Não tenho exatamente a mesma opinião de outras feministas. Até que alguém seja julgado pela Justiça, precisa ser considerado inocente. Mas, no caso de Roman Polanski, isso é um fato.

É significativo que a Cinemateca –uma instituição francesa– faça uma retrospectiva sobre ele. Quando fazemos uma retrospectiva, dizemos "OK, tudo bem você ser um criminoso".

Dizem que arte e artista não são a mesma coisa. Mas, em uma retrospectiva como a da Cinemateca, estamos falando do homem. De Roman Polanski. Não apenas da arte.

Não há o risco, em casos que não foram julgados, de haver uma caça às bruxas?

É claro que parte das pessoas pode ser inocente. Em todas as áreas há acusações falsas, testemunhos falsos. Mas são 2% –não entendo por que se focam eles, e não os outros 98% restantes. Essa é só uma parte pequena da questão. A outra, que é a maior, é a realidade.

RAIO-X

IDADE 37 anos

ORIGEM Nascida em Ain, na França

CARREIRA Militou na Anistia Internacional e na União Nacional dos Estudantes da França

FEMINISMO Fundou em 2009 a associação Osez le Féminisme!; em 2014 criou o site Macholand para recolher denúncias contra o machismo

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