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06/08/2010 - 08h07

William Boyd debate na Flip e fala sobre identidade em novo livro

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FABIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL A PARATY

O escritor William Boyd é filho de escoceses, nasceu em Gana, viveu na Nigéria, estudou em Glasgow, em Nice e em Oxford e hoje divide seu tempo entre Londres e o interior da França --além de passar 40 dias por ano em Nova York.

Veja a cobertura completa da Flip

"Se você me perguntar de onde eu sou, é algo muito complicado, não há resposta fácil. Minha identidade é muito complexa e muito confusa", disse em entrevista à Folha, por telefone, da sua propriedade rural perto de Bergerac, sudoeste francês, onde produz vinhos.

Eis porque a questão da identidade é tema recorrente na obra de Boyd. Reaparece agora em "Tempestades Comuns", que sai no Brasil junto com o livro de contos "Fascinação", ambos pela Rocco.

O trânsito intenso entre culturas e a vivência colonialista o tornam, como ele próprio afirma, "o candidato perfeito" a integrar na Flip a mesa "Chá Pós-Colonial", às 15h de hoje, ao lado da guianense-britânica Pauline Melville, com mediação de Ángel Gurría-Quintana.

"Toda a minha juventude foi colonial, e isso moldou e influenciou a minha forma de pensar e de escrever. Então sou o candidato perfeito para falar de colonialismo e vida pós-colonial, porque sou da última geração de britânicos colonialistas --eles não existem mais."

Thriller inspirado em Dickens, "Tempestades Comuns" conta a história de um jovem americano em Londres que é obrigado a mudar radicalmente de vida (e de identidade) após um crime.

Com ritmo cinematográfico (Boyd é também roteirista de cinema e TV) e sofisticação narrativa, o romance reúne um painel de tipos da sociedade multicultural londrina e usa o rio Tâmisa quase como um personagem a ideia para o livro surgiu quando o escritor leu uma notícia de que mais de 50 cadáveres são retirados anualmente do rio.

Boyd já fora convidado à Flip em 2007, mas cancelou a vinda por problema de saúde da mulher.

Com fala mansa e senso de humor afiado, ele comentou sua condição de "europeu" acima de tudo, contou de sua relação com Londres, lembrou da farsa Nat Tate (um artista fictício criado por ele que enganou muitas pessoas pelo mundo) e revelou o seu próximo romance, ambientado em Viena em 1913.

Leticia Moreira/Folhapress
O escritor William Boyd, que lança dois livros, na janela da pousada Marquesa, em Paraty
O escritor William Boyd, que lança dois livros, na janela da pousada Marquesa, em Paraty

Por que cancelou vinda à Flip em 2007?
Por um motivo muito simples: minha mulher, que iria comigo, teve um problema de coluna muito sério e não pôde viajar. Estive em Paraty numa viagem privada em 2004 e estava muito querendo voltar, mas ela de repente caiu doente e cancelamos no último momento.

E gostou de Paraty em 2004?
Eu adorei. Fizemos uma visita fantástica ao Brasil, estivemos no Rio, foi uma espécie de introdução ao país, algo que me fascinou por muitos anos. Viagem verdadeiramente tremenda. Estou muito feliz de poder voltar.

Qual a sua expectativa para este ano. Vai participar, com Pauline Melville, de uma mesa chamada "Chá Pós-Colonial". O que acha do tema?
É muito interessante, porque nasci na África, em Gana, num tempo que era colônia britânica. Nos 20 primeiros anos de minha vida, minha casa foi o oeste africano _primeiro em Gana e dos 10 aos 20 na Nigéria. Então toda a minha juventude foi colonial. E isso definitivamente moldou e influenciou a minha forma de pensar e de escrever. Então sou o candidato perfeito para falar de colonialismo e vida pós-colonial, porque sou da última geração de britânicos colonialistas --eles não existem mais. Não sei exatamente como me moldou, mas esse período africano exerceu uma enorme influência em mim como pessoa e escritor.

Talvez por causa desse passado o tema da identidade é tão forte em sua obra e uma vez mais em "Tempestades Ordinárias"?
Você está absolutamente certo. E isso se tornou mais aparente para mim à medida que fui envelhecendo. Se eu perguntasse de onde você é, você dirá "São Paulo". Se você me perguntar de onde eu sou, é algo muito complicado, não há resposta fácil. Minha identidade é muito complexa e muito confusa e talvez isto explique por que em meus últimos três ou quatro romances eu investiguei diferentes tipos de problemas associados à identidade. Você pode mudar quem você é? Você é várias pessoas numa só vida? O que acontece quando você se reinventa? Algumas pessoas querem mudar suas identidades, outras são forçadas a trocar. Todas essas questões estão muito associadas à natureza humana. Todo mundo se pergunta essas coisas: como seria se eu fosse diferente, se eu não tivesse vivido aqui, se eu não tivesse conhecido alguém. É uma questão fundamentalmente humana. Mas em meu caso, pela minha formação --sou escocês, mas nasci e cresci na África. As pessoas na Escócia acham que sou inglês, eu vivo na França. E isso aparece nos meus romances.

Hoje você se sente mais escocês, mais inglês, mais francês, mais africano?
É engraçado, na verdade eu me sinto mais europeu. Pode parecer estranho, mas eu costumo passar um tempo nos EUA, 30 a 40 dias por ano em Nova York, e toda vez que eu vou para lá, quando volto para Londres ou para a França, eu percebo o quão europeu eu sou e como diferente sou dos americanos. Falamos a mesma língua, mas há algumas diferenças fundamentais de sensibilidade, de cultura, de autopercepção. Depende da pergunta que você faça: se a Escócia jogar contra o Brasil no futebol, vou torcer para a Escócia [risos]. Sinto-me em casa em Londres e também na França, é algo que se desloca, que muda. Viajo muito pela Europa e, para ser honesto, acho que tenho uma sensibilidade europeia em vez de uma sensibilidade inglesa, escocesa ou francesa.

É verdade que você teve a ideia para o livro ao ler numa notícia de jornal que a polícia recolhe todo ano de 50 a 60 cadáveres do Tâmisa?
Sim. Eu vivo em Londres há 27 anos e a conheço muito bem. Neste período a cidade mudou enormemente e acho que é hoje a mais cosmopolita, multicultural e multiétnica capital do mundo. E queria escrever um romance sobre a cidade e não sabia como. Então li esse artigo sobre todos esses cadáveres no rio Tâmisa --é mais que um por semana-- e me perguntei quem são essas pessoas, por que morreram, o que levou à sua morte no rio. E percebi que a velha Londres, a cidade perigosa, escura e vitoriana estava ali. Pensei que poderia usar o rio como forma de entrar ali e escrever sobre Londres.
Moro muito perto do rio, a 100 metros, ando por ali todo dia, é uma parte muito familiar da minha Londres. É um rio muito dramático, porque é um rio de maré, que enche e seca quatro metros todo dia. Toda vez que você olha para o rio ele está diferente. Não é como o rio em Paris, em Roma ou Nova York. É algo vivo e mutante. Então virou uma espécie de personagem do romance. E o romance se tornou uma viagem rio abaixo, a partir da área de Londres em que vivo, Chelsea, até o mar.

Há cinco anos eu morei em Londres e certo dia vi uma baleia no Tâmisa. Qual a coisa mais estranha que você já viu no rio?
Bem, nunca vi uma baleia nem nunca vi um cadáver. Estou pensando. Acho que talvez a coisa mais estranha que já vi foi o meu amigo Daniel Craig, que faz o James Bond --nós fizemos um filme juntos--, sendo transportado num bote inflável laranja pelo Tâmisa para dar uma entrevista coletiva anunciando que ele seria o novo James Bond. Ele estava tão nervoso que estava quase vomitando. E ele vestia terno e gravata [risos]. Essa foi a coisa mais estranha.

Dickens é a principal influência neste romance? Esses personagens degradados socialmente comporiam um romance neodickensiano?
Sou um grande leitor de Dickens e ele é uma influência muito forte neste livro. Penso particularmente num romance que ele escreveu no fim da vida, chamado "Our Mutual Friend" (nosso amigo comum). É ambientado em Londres e começa com um corpo sendo retirado do Tâmisa. É o último romance que fez antes de morrer e é um livro sombrio sobre Londres. Quando li a notícia dos cadáveres no rio, pensei imediatamente em Dickens e na cidade do século 19, perigosa e escura. E percebi que em Londres --como em várias cidades, mas é muito óbvio em Londres-- os séculos passados são visíveis. Você ainda pode ver a Londres de Shakespeare, de Dickens, a Londres do século 18, é uma camada em cima da outra. Quis escrever um romance meio neodickensiano no sentido em que mostrasse todos os níveis da sociedade, dos milionários e aristocratas aos drogados e prostitutas. Quis abarcar toda a Londres atual, no seu sentido social --das classes altas às mais baixas--, no seu multiculturalismo e em sua multietnicidade. Isso me parece um tipo de versão moderna de um romance de Dickens.

É verdade que o filme será adaptado para o cinema?
Sim, estou acabando de escrever o roteiro. Temos um produtor muito bom, que está associado à BBC Filmes. Queremos filmar no verão [não há diretor definido].

Você escreve romances, livros de espionagem, roteiros para cinema e TV, livros com uma perspectiva feminina. Uma crítica escreveu que você é um autor que alterna os gêneros literários como uma criança com seus novos brinquedos. Como isso funciona?
Acho que é algo muito temperamental. Não sou um autor autobiográfico, não uso minha própria vida como material dos meus livros. Leva-me cerca de três anos para criar e escrever um livro. Preciso ser estimulado pelo assunto. Penso que é por isso que mudo tanto de gêneros e que meus livros mudam a cada romance, porque minha própria curiosidade me leva a diferentes áreas da experiência humana. Histórias diferentes me fascinam, ideias diferentes me agarram. Meu próximo romance começa em Viena em 1913. Vou voltar no tempo novamente, quase cem anos. Será completamente diferente de "Tempestades Comuns". Estou sempre buscando novos objetos, novos cenários, novas histórias.

E como teve a ideia para esse próximo romance?
Tornei-me um interessado em psicanálise e, claro, você pensa em Freud, que viveu em Viena. Estive em Viena várias vezes e fui à casa de Freud, que hoje é um museu e estava tentando imaginar... A psicanálise freudiana é uma das grandes revoluções intelectuais da espécie humana. O que era ser analisado no início da psicanálise. Digo, hoje todos somos freudianos, todos acreditamos no nosso inconsciente, mas naquele tempo era chocante e revolucionário.

Então pensei como seria interessante ter um jovem cheio de problemas sendo analisado em Viena em 1913. A cidade naquele tempo era extraordinária, porque você tinha revoluções na música, nas artes, na arquitetura. Você tinha Trótsky morando lá, Stálin morando lá, Hitler morando lá, Wittgenstein. E Freud. Era um lugar extraordinário para estar no começo do século 20 e de certa forma moldou a personalidade moderna. Todas essas ideias se juntaram e pensei: vou começar meu romance em Viena em 1913 e ver o que acontece. Começa lá, mas não acaba lá. É por causa da minha fascinação com a cidade e com aquelas pessoas que estavam lá.

Qual foi a ideia que moveu o projeto Nat Tate e quais foram as reações mais engraçadas a ele?
Foi um processo muito estranho, porque eu escrevi um romance chamado "The New Confessions" (as novas confissões), uma espécie de falsa autobiografia. O livro fez muito sucesso, e as pessoas ficaram muito convencidas de seu realismo. E me perguntei se seria possível escrever uma peça de ficção ainda mais real e convincente e pensei que o que precisava era de fotografias e do testemunho de pessoas vivas. Estava pensando na ideia, na época eu era do conselho editorial de uma revista de arte, e o editor me disse um dia que gostaria muito de ver ficção na revista. E eu disse: por que não invento um pintor? Simples assim, espontaneamente: vou inventar um pintor. Quando tinha todo o material pronto --fotografias etc.--, escrevi um pequeno livro sobre esse pintor totalmente ficcional chamado Nat Tate.

Pessoas reais, como Gore Vidal, David Bowie, o crítico de arte John Richardson, participaram da trama. E lembraram de ter conhecido Nat Tate.

O livro foi lançado, e as pessoas pensaram que ele era real. Foi extraordinário, sou muito orgulhoso disso. Foi como um experimento, para ver até onde você pode levar algo que é totalmente fictício, até que se torne um fato.

Lançamos o livro em Nova York, Bowie o publicou. Tivemos uma grande festa num estúdio de arte muito transado, do artista Jeff Koons, reunindo toda a intelligentsia. Eu não estava lá, mas Bowie leu trechos do livro. Um jornalista britânico saiu pela festa perguntando às pessoas se elas conheciam Nat Tate, se já tinham visto suas pinturas. E claro que muitos diziam que se lembravam, que tinham visto exposições dele...

O jornalista sabia de tudo?
Sabia, ele estava na conspiração. E ele guiava as perguntas, fazia as pessoas cavarem suas próprias covas. Uma semana depois íamos fazer a mesma coisa em Londres. De novo, dei grandes entrevistas à imprensa britânica, a jornalistas que pensavam que Nat Tate tinha existido. Mas o repórter [que estivera no lançamento nova-iorquino] percebeu que tinha uma grande história e que não podia esperar para publicá-la. E antes do lançamento britânico ele expôs toda a farsa. Foi uma história mundial por 24 horas e rendeu. Fizemos três documentários de TV sobre Nat Tate, escrevi sobre ele, publicamos livros na Alemanha, no Reino Unido. Então Nat Tate existiu, embora tenha sido uma criatura

Como é a sua experiência como vinicultor? Você tem lucro com isso ou é só por prazer?
Não lucro, porque o governo francês não me permite. É uma burocracia complicada. Não posso explorar comercialmente a menos que eu mude a documentação para explorar a terra da qual sou dono. Tenho meu nome na garrafa, como proprietário, e tento beber o máximo que posso, mas não posso fazer um centavo. Tenho um tipo de joint venture com um jovem vinicultor francês, ele ganha todo o dinheiro. Começamos em 1996. Eu o ajudo a vender, porque ele vende sob o nome de nossa casa, sob o meu nome. Eu só ganho a glória. E eu tenho uma boa quantidade de vinho grátis. É um vinho muito bom, bebi um pouco no almoço de hoje, o rosé.

Quantas garrafas produzem por ano?
Num bom ano, cerca de 15 mil garrafas. Fazemos tinto, branco e rosé. O branco é com sauvignon blanc. O rosé usamos cabernet sauvignon. E o tinto é uma mistura de cabernet sauvignon, merlot e malbec.

Vai trazer algumas garrafas para Paraty?
Gostaria de poder, mas acho que é difícil de exportar. Mas você hoje pode comprar em Londres, além da França.

TEMPESTADES COMUNS
AUTOR: William Boyd
TRADUÇÃO: Paulo Reis e Sergio Moraes Rego
EDITORA: Rocco
QUANTO: R$ 59,50 (384 págs.)

FASCINAÇÃO
AUTOR: William Boyd
TRADUÇÃO: André Pereira da Costa
EDITORA: Rocco
QUANTO: R$ 39 (224 págs.)

 

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