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19/08/2011 - 07h50

Leia trecho do novo livro de Fernando Morais

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DE SÃO PAULO

Leia abaixo um trecho do livro "Os últimos soldados da Guerra Fria", de Fernando Morais.

Fernando Morais reconstrói atuação de espiões cubanos

*

Fazia muito calor em Havana naquele fim de outono de 1990. A única bênção da natureza, nessa época do ano, é que a noite cai mais cedo, antes das seis da tarde, varrendo a cidade com uma leve e fresca aragem vinda das ondas do Caribe. Embora fosse um sábado --8 de dezembro de 1990, ela jamais esqueceria esse dia--, Olga decidira gastar a folga fazendo trabalho voluntário na Tenerías Habana, empresa estatal da qual era engenheira. Por volta das sete horas, noite fechada, desceu do ônibus na arborizada Quinta Avenida e caminhou uma quadra até o modesto apartamento em que vivia com o marido, René, e a filha, Irmita, no outrora elegante bairro de Miramar, a meia hora do centro da capital. Ao sair de casa, no final da manhã, Olga propusera a René que deixassem a menina de seis anos com a avó e aproveitassem para assistir a um filme brasileiro dirigido por Miguel Faria Jr., Estelinha, que naquela noite abriria o Festival de Cinema Latino-Americano no cine Yara, no centro da cidade.

Quando voltou para casa, Olga percebeu que as luzes do apartamento estavam apagadas --sinal de que René se atrasara e que o festival de cinema ia ficar para outro dia. Ao entrar e acender as luzes, viu que Dândi, o cachorrinho da filha, rasgara com os dentes uma pilha de jornais velhos, espalhando pedaços de papel por
todos os lados. Quando foi à cozinha pegar uma vassoura, ouviu a vizinha falar com alguém:

- Olhem, acenderam as luzes. Ela chegou.

Segundos depois bateram à porta. Abriu e deu com dois homens de ar grave. Um deles se adiantou:

- A senhora é Olga Salanueva, esposa de René González? Podemos entrar?

A reação foi imediata: o marido, piloto e instrutor de paraquedismo, sofrera um acidente aéreo.

- Quem são vocês? Onde está René? O que aconteceu com ele?

O homem tentou acalmá-la:

- Somos do Ministério do Interior. Por favor, sente-se, nós vamos lhe explicar.

- Explicar o quê? Meu marido! O que aconteceu com meu marido? Ele está ferido? Está vivo?

- A senhora sabia que seu marido ia voar hoje?

- Sim, sabia. O que aconteceu com ele?

A resposta, ela se lembraria depois, teve o efeito de uma pancada com um taco de beisebol na cabeça:

- Seu marido desertou.

- René? Imagine! René é um veterano de Angola, um militante do Partido! De onde vocês tiraram isso?

- René roubou um avião no aeroporto de San Nicolás e fugiu para Miami.

- Não acredito! Não acredito! Isso é uma infâmia!

A despeito do transtorno dela, o homem continuou seco, imperturbável:

- A senhora tem rádio em casa? Se tiver, ligue na Radio Martí.

Criada em maio de 1985 pelo presidente norte-americano Ronald Reagan para difundir propaganda anticastrista junto à população cubana, a estação podia ser sintonizada em ondas curtas até no pequeno rádio de pilhas de Olga. Com o coração acelerado ela localizou o sinal no aparelho e a voz do marido se espalhou pela casa, cristalina, na entrevista que vinha sendo repetida o tempo todo, desde o meio da tarde:

- Tive que fugir. Em Cuba falta luz, falta comida, até a batata e o arroz estão racionados. O combustível para nossos aviões é contado gota a gota. Para mim, Cuba acabou.

O estarrecimento de Olga era mais que justificado. René, 34 anos, mais de 1,80 metro de estatura, magro, rosto seco, nariz pronunciado e olhos claros rodeados por discretas olheiras, era um herói de guerra condecorado pelo governo cubano. Formava um belo par com Olga, um palmo mais baixa e três anos mais jovem
que o marido, atraente, ar decidido, sobrancelhas marcadas e farta cabeleira. Além de filhos de operários, os dois tinham em comum a militância no Partido Comunista, no qual haviam sido admitidos fazia poucos meses, e o fato de gostarem de crianças e de cachorros. A principal diferença entre eles estava na origem: Olga era habanera legítima, de pai e mãe, e René cidadão norte-americano, nascido em Chicago. Também comunista de carteirinha, o pai dele, o metalúrgico Cándido, emigrara para o Texas em 1952 na esperança de se profissionalizar como jogador de beisebol --já naquela época o esporte nacional tanto de Cuba como dos Estados Unidos. A sonhada carreira de pitcher, porém, nunca passaria de raros treinos nos campos de times das grandes ligas. Entre voltar a Cuba, onde o esperava a repressora ditadura de Fulgencio Batista (1933-59), e tentar a vida como trabalhador braçal, optou pela segunda alternativa. Mudou-se para Chicago, voltou a ser operário, e lá se casou com Irma Sehwerert, neta de alemães e filha de cubanos emigrados, com quem teve dois filhos --René, nascido
em 1956, e Roberto, em 1958. E foi em Chicago que a família recebeu a notícia de que Fidel Castro havia posto a pique a ditadura de Batista. Em abril de 1961, quando os Estados Unidos tentaram invadir Cuba pela baía dos Porcos, Cándido decidiu que estava na hora de voltar para a terra natal com a mulher e os filhos.
René nunca mais tinha posto os pés no país em que nascera.

Quando Olga o conheceu, em 1983, trabalhava como instrutor de pilotagem em aeroclubes pelo interior do país. E, embora tivesse apenas 27 anos, era um veterano da Guerra de Angola --nada muito espantoso em Cuba, onde mais de meio milhão de pessoas, ou 5% da população masculina adulta, haviam participado de missões militares no exterior. Mas René não era um anônimo entre os cerca de 300 mil cubanos que lutaram ao lado do Movimento Popular de Libertação de Angola, mpla, apoiado pela urss, que combatia a Frente Nacional de Libertação de Angola, fnla, e a União Nacional para a Independência Total de Angola,
Unita, a primeira patrocinada pelos Estados Unidos, China e Zaire, e a segunda pela África do Sul. Ao dar baixa, depois de dois anos nas selvas africanas, período em que realizou 54 missões de combate pilotando tanques soviéticos armados com canhões de 120 milímetros, trazia no peito a medalha do que o governo de
Havana denomina oficialmente Combatente Internacionalista. O dia 8 de dezembro de 1990 começou para ele igual a todos os outros. Acordou às cinco horas e correu oito quilômetros pelas alamedas de Miramar. De novo em casa --um apartamento tão pequeno que o único lugar onde dava para se esticar e fazer quinze
minutos de flexões e abdominais era o minúsculo espaço ao lado da cama do casal--, tomou um banho frio, despertou Olga e juntos compartilharam um rápido café da manhã. Não tiveram tempo para muita conversa, porque às sete em ponto passava pela Quinta Avenida o micro-ônibus que recolhia em Havana os funcionários do aeroporto civil de San Nicolás de Bari, a cinquenta quilômetros da capital, onde René trabalhava fazia dois anos como instrutor. Ao se despedirem, ela o lembrou do compromisso noturno que haviam combinado:

- Não se atrase porque às oito temos cinema.

- Às seis estarei de volta, não se preocupe.

Ainda mortificada com o que ouvira no rádio, Olga nem percebeu quando os homens foram embora. Aquilo não parecia uma gravação forjada, nem René aparentava ter sido obrigado a falar aquele monte de asneiras. Desligou o rádio e telefonou para o cunhado Roberto, advogado que também tinha passado sua temporada em Angola. Sem coragem de dar a notícia por telefone, disse apenas que alguma coisa acontecera com o marido e pediu que ele viesse com urgência a sua casa. Roberto não se assustou. Sabia que o irmão era um exímio piloto, e que as aeronaves de San Nicolás eram revisadas regularmente - às vezes pelo próprio René. Os aviões do aeroclube eram tão seguros que, se quisesse ou precisasse, o piloto poderia até cortar o motor em pleno voo, planar e depois descer em alguma pastagem ou praia. Na pior das hipóteses ele teria sido forçado a um pouso de emergência. Não havia motivo para preocupações. A tranquilidade durou somente até a hora em que ele abriu a porta e deu com uma Olga desfeita, com os olhos inchados. A cunhada o abraçou, chorando:

- René desertou, fugiu para Miami.

Ele arregalou os olhos:

- Você está louca, quem lhe disse isso?

- Ouça a Radio Martí.

Ligou o rádio e o ar foi tomado pela entrevista, repetida pela enésima vez. Com a voz inconfundível, René reclamava das mazelas que o tinham convertido no que em Cuba se considera ser um traidor da Revolução: falta comida, falta dinheiro para comprar comida, falta transporte, falta isso, falta aquilo. Roberto
deu um grito:

- Desligue esse rádio! Não quero ouvir esse sujeito falandomerda! Esse cara não é meu irmão!

- Esse também não é o René com quem eu me casei, não é o pai da minha filha. Roberto, isso deve ser alguma armação dos gringos!

Não era. Ao meio-dia, depois de lançar do ar o jovem Michel Marín, o último aluno de paraquedismo inscrito no turno da manhã, René viu que o pequeno aeroporto estava semideserto. Aproveitou a hora de almoço dos dois funcionários da torre de controle, cortou com um alicate os cabos do radiocomunicador e enfiou o microfone no bolso do macacão. Desceu as escadas aos saltos e entrou na cabine da única aeronave estacionada fora dos hangares. Era um Antonov an-2 amarelo, de asas duplas, fabricado na Rússia quarenta anos antes, aparelho utilizado em Cuba para fumigação agrícola e como rebocador de planadores. Quando
o pessoal de terra se deu conta de que algo estranho ocorria, o avião já estava no ar.

 

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