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Em 'Luxúria', Fernando Bonassi narra euforia e desconforto da classe média

Próximo encontro do Clube de Leitura Folha discute o livro do paulistano

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Bruno Zeni

RESUMO O próximo encontro do Clube de Leitura Folha, nesta terça (24) às 19h, vai discutir o livro "Luxúria", de Fernando Bonassi. O evento acontece na Tapera Taperá, na Galeria Metrópole (centro de SP) e tem entrada gratuita. No texto a seguir, o escritor Bruno Zeni faz uma resenha crítica da obra.

 

O tom narrativo de “Luxúria”, de Fernando Bonassi, é de euforia e desconforto. O homem de que trata esse relato se sente “no auge de suas possibilidades”, e o momento histórico é de prosperidade econômica, ainda que o tempo seja tanto de desenvolvimento quanto de endividamento. A partir desse quadro geral, a situação sobre a qual o romance se concentra é inusitada: o personagem decide, num impulso, comprar uma piscina pré-fabricada para instalar no quintal de casa.

O protagonista é um operário qualificado e de vida relativamente estabelecida. Trabalha como ferramenteiro em uma fábrica há muitos anos, é casado e tem um filho pré-adolescente. Apesar dos ventos favoráveis, tudo é permeado de violência e mal-estar, como se o contexto econômico não tivesse penetrado na vida pessoal de cada um —ou o tivesse feito de maneira perturbadora.

bonassi sentado no sofá
O escritor Fernando Bonassi, autor de "Luxúria" - Marcus Leoni/Folhapress

O homem sente um gosto amargo na boca, que parece fruto de alguma doença estomacal. A mulher vive acuada em casa, em embates diários com a empregada, e passa a tomar antidepressivos. O menino tem por hábito ouvir em seus fones de ouvido programas de rádio de trânsito.

Os capítulos vão se alternando: há o cotidiano de trabalho do homem na fábrica, onde é funcionário competente e respeitado, há a rotina da mulher e do filho, que frequenta uma escola na qual os professores são ruins e o ambiente é destrutivo, e há outras dinâmicas do entorno: templos, a escola, um posto de saúde, uma casa de repouso.

O livro retoma algumas das características que atravessam toda a obra de ficção de Fernando Bonassi: a ambientação paulistana, o cenário urbano conflagrado e violento, em que “as coisas esmagam as pessoas”; a dificuldade de comunicação entre os personagens; o comportamento condicionado de muitos deles; a ausência de nomes dos protagonistas; a narração objetiva, centrada na ação, com foco em terceira pessoa, isto é, com um narrador distanciado daquilo que descreve e conta.

O narrador se refere ao protagonista como “homem de que trata este relato”. Sua mulher tampouco tem nome, assim como o filho do casal, a empregada da casa ou qualquer outro dos personagens que aparecem ao longo da trama. Isso já ocorria nos outros romances do autor, como “Um Céu de Estrelas” (1991), “Subúrbio” (1994), e “O Céu e o Fundo do Mar” (1999).

Chama a atenção também a maneira como o narrador se mantém bastante distanciado de seus personagens, em um procedimento que não é novo na obra de Bonassi e ganha nova intensidade com a mistura de diversas falas.

Diferentes gêneros textuais já apareciam em obras anteriores, inclusive nos livros de contos e minicontos (“100 Histórias Colhidas na Rua”, “Passaporte”), mas agora, em comparação com os outros romances, há maior fragmentação e alternância de estilos de narrar: um capítulo pode ser construído pela fala de um pastor (20. Sermão da prosperidade II), outro pode assumir um tom de crônica (23. Televisão), de noticiário (34. Notícias da hora), de relatório escolar (42. Aviso de saúde), de documento jurídico (53. Intimação) ou trabalhista (73. Bilhete azul).

Dentro de cada um dos capítulos, as vozes também se confundem muitas vezes, e os diálogos não são marcados da forma tradicional, por meio de travessões ou aspas, mas por frases destacadas em itálico, o que muitas vezes confunde, de forma proposital, o que se diz, o que se pensa, o que poderia ser dito e o que está interdito.

É como se a situação do romance, que é particular, centrada em uma única família, mas também geral, pois se dá num contexto social e histórico específico, estivesse pressionada, em ebulição, prestes a explodir.

O resultado desse estilo narrativo singular é uma ironia ácida, com pouco espaço para o humor, uma ironia fria, que cria distanciamento e permite ao leitor aderir à narrativa sem perder a capacidade de refletir sobre o que lê.

O tema da luxúria, que dá título ao livro, aparece sobretudo na maneira como o protagonista e sua mulher se entregam ao sexo, mas também parece transbordar para o tema do consumo e da economia. Adquirindo a piscina, o protagonista se sente mais viril por confirmar o seu poder de compra. E, em certas passagens, a linguagem baixa usada para descrever o ato sexual deriva para o jargão econômico: os “cômodos da frente” da mulher “estão alugados para o usufruto dele” (p. 142).

O romance insiste na fragilidade da emancipação econômica baseada no crédito fácil, nos juros subsidiados, num cenário econômico construído e inflado artificialmente, que faz a classe média ter adquirido bens materiais, sem, entretanto, ter melhorado seu padrão de vida em outros termos, mais coletivos.

Como diz o narrador, “este momento histórico de prosperidade se baseia nas empresas de segurança privada, na indústria de automóveis populares e de armamentos básicos” (p. 122-123).

Nessa épica rebaixada e privatista, em que o grande feito é a concretização de um sonho de consumo – ter uma piscina no quintal da própria casa, ou comprar carros, eletrodomésticos e outros produtos a prestação –, a realização não traz reconhecimento, heroísmo ou redenção.

O que a narrativa encena, por linhas tortas, é o descompasso entre as promessas de sucesso e felicidade dos discursos (da política, das igrejas, da economia, da publicidade) e uma realidade brutal, que insiste em mostrar as garras por meio de personagens ambíguos e intermediários, como a polícia, os patrões, os vendedores, o pastor, o oficial de justiça.

O tempo do romance é o momento histórico brasileiro em que as relações entre crescimento econômico e crise social se acirraram, o que faz de “Luxúria” um livro incontornável para pensar as relações entre narrativa e experiência em um país desigual, que ainda precisa incluir mais gente em seus processos econômicos, mas um país permanentemente acossado por forças desagregadoras, criminosas e destrutivas, muitas delas travestidas de legalidade e formalidade.


Bruno Zeni, 43, é escritor, editor e doutor em teoria literária, com pós-doutorado em literatura brasileira na USP. É autor de "Corpo a Corpo com o Concreto" (Azougue), "Você é Minha Notícia Secreta" (Quelônio) e "Sinuca de Malandro: Ficção e Autobiografia em João Antônio" (Edusp). 

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