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João Pereira Coutinho

Revolução dos Cravos, 50, foi onda democrática que chegou ao Brasil

Queda da ditadura em Portugal impactou o mundo, mas problemas internos persistem

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Cravo de rosa em homenagem à Revolução dos Cravos, que derrubou ditadura em Portugal, em celebração no Porto em 2023 Manuel Bayon - 25.abr.23/Agência Enquadrar/Folhapress

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa e colunista da Folha

[RESUMO] Em 25 de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, movimento liderado por militares e apoiado pela maioria da população civil, pôs fim ao Estado Novo em Portugal, regime ditatorial que vigorou por 41 anos. João Pereira Coutinho comenta os contextos sociais e econômicos que levaram à queda da ditadura, o turbulento processo de democratização nos meses seguintes, os impactos da revolução em países que viviam sob governos autoritários, como o Brasil, e como os portugueses avaliam os últimos 50 anos.

Foi bonita a festa, pá? Digo que foi, embora não tenha estado presente. Nasci depois de tudo. Esse tudo, aqui, é o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos, 50 anos atrás. Mas, às vezes, nas minhas horas de ociosidade, pergunto o que teria sido de mim se a sorte me tivesse jogado duas ou três gerações antes de eu nascer, no mesmo país, sob o regime ditatorial de António de Oliveira Salazar (1889-1970) e Marcello Caetano (1906-1980).

Dizer que a minha vida teria sido diferente seria um eufemismo: como escrever livremente em um país com censura prévia e polícia política? A cadeia ou o exílio teriam sido opções possíveis. Ou o silêncio, já agora: nunca devemos subestimar o papel da boa e velha covardia.

Soldados portugueses durante a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, em Lisboa, que pôs fim à ditadura do Estado Novo - Jornal de Notícias do Porto

O que é válido para a loucura da arte é válido para a loucura da guerra —em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau— que consumiu as gerações anteriores.

Em princípio, minhas maleitas físicas teriam poupado a carcaça a certos terrores. Mas nunca fiando: entre 1961 e 1974, 200 mil rapazes foram mobilizados para as "províncias ultramarinas", com o fino propósito de defender as populações brancas das guerrilhas independentistas (o que se compreende), e por lá continuaram, contra toda a lógica, defendendo o "império" ou uma noção anacrônica de império (o que não se compreende). É muito?

É muitíssimo. Falamos de 2% da população portuguesa, contas por baixo, um número superior, em termos relativos, às tropas que os Estados Unidos enviaram para o Vietnã. Mais de 8.000 não regressaram. Trinta mil regressaram, mas em péssimo estado. Poderia ter sido um deles? A resposta arrepia de tão óbvia.

Como foi óbvia para os "capitães de Abril" quando disseram basta à guerra e, por inerência, ao regime. Um deles era Fernando José Salgueiro Maia (1944-1992), que na madrugada do 25 de Abril de 1974 falou assim aos seus homens, antes de sair com eles para derrubar o Estado Novo: "Meus senhores, como todos sabem, há diversas modalidades de Estado: os sociais, os corporativos e o estado a que chegamos. Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegamos".

Não é qualquer um que inaugura uma revolução com essa mistura de clareza e humor. Mas Salgueiro Maia não era qualquer um: no Movimento das Forças Armadas, ele foi o mais corajoso e, deposto o regime, um dos mais recatados também. Morreu jovem e relativamente esquecido. Mas divago.

Estou grato a esses homens. Estou grato aos que vieram depois: derrubar um regime autoritário não é coisa pouca; mas construir uma democracia liberal é tarefa ciclópica.

Entre 1974 e 1975, Portugal oscilou entre radicalismos de sentido oposto: uma tentativa de golpe da extrema direita em março de 1975, uma tentativa de golpe da extrema esquerda em novembro do mesmo ano.

Mas o que importa, para lá dessas contabilidades macabras que continuam a alimentar ressentimentos vários nas franjas da sociedade portuguesa, é olhar para o povo. Falo do povo que realmente existe, não do "povo" como criação mítica de vanguardas revolucionárias que têm o hábito desagradável de falar em seu nome.

Nas primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, em 1975, os portugueses votaram. Para quem acompanhava o curso da revolução nas ruas, nas fábricas, nos campos, nos jornais, na televisão, o caminho para o comunismo parecia inexorável. Pelo menos, para quem achava que os portugueses, depois de experimentarem a mais longa ditadura da Europa, estariam dispostos a ter outra, de inspiração soviética.

Quase 92% dos eleitores acorreram às urnas, números que nunca mais se repetiram. Quando os resultados foram divulgados, 68% escolhiam partidos defensores da democracia liberal e do pluralismo político (o PS, o PPD e o CDS, por ordem decrescente).

O Partido Comunista, que se julgava ungido pela história e proprietário do país, ficava em terceiro lugar, com 12,5%. A "legitimidade revolucionária", como então se dizia, sofreu um golpe fatal. Ainda sobreviveu uns meses, na união perversa entre a ala radical do Movimento das Forças Armadas e a extrema esquerda. Ocuparam-se terras, nacionalizaram-se empresas, cometeram-se abusos e violências contra as forças da "reação", ou seja, contra os democratas. Mas o país tinha falado e nunca mais voltou atrás.

Como diria mais tarde o presidente e primeiro-ministro Mário Soares sobre o "verão quente" de 1975: "As praias e os parques de automóveis estavam literalmente a abarrotar. Como é possível, pensei, com esta classe média tão forte, com toda esta gente nas praias, que se venha dar aqui um golpe comunista? Não era". E não foi.

Quando eu nasci, em 1976, a democracia era um fato, ainda que limitada pela tutela dos militares (até à primeira revisão constitucional de 1982). A entrada na Comunidade Econômica Europeia, em 1986, passou a ser o horizonte de um país que só queria uma vida normal.

Tive direito a uma vida normal: educação pública até a universidade, fronteiras abertas para viajar pela Europa durante toda adolescência e a liberdade para escrever e publicar por minha conta e risco.

Quando fui a tribunal por abuso de liberdade de imprensa, pouco depois dos 18 anos, não foi a Pide/DGS, a polícia política do regime salazarista, que me foi buscar a casa. Caminhei para a sala de audiências pelo meu próprio pé, conhecendo os meus direitos e deveres.

E por falar em pé: foi ele que me salvou quando compareci à inspeção para cumprir o serviço militar obrigatório, só abolido no século 21. Fui dado como "inapto". Nunca estive nas antigas províncias ultramarinas, muito obrigado.

Foi bonita a festa, pá? O cientista político Samuel Huntington não tem dúvidas: foi belíssima. Nas primeiras linhas do clássico "The Third Wave: Democratization in the Late 20th Century" (a terceira onda: democratização no final do século 20), escreve Huntington: "A terceira vaga de democratização no mundo moderno começou, implausível e involuntariamente, 25 minutos depois da meia-noite, quinta-feira, 25 de abril de 1974, em Lisboa, Portugal, quando uma estação de rádio tocou a canção 'Grândola Vila Morena'".

Explico melhor. Na obra de Huntington, a democracia na era contemporânea é como as ondas do mar, avançando e recuando em momentos históricos particulares. E arrastando consigo outros países, por influência ou exemplo.

A primeira vaga aconteceu entre 1828 e 1926 e tem as suas raízes na Revolução Francesa e no alargamento do direito de voto nos Estados Unidos (aos homens brancos, claro).

A sua contravaga surgiria em 1922, com a infame marcha dos fascistas sobre Roma, contaminando Portugal (em 1926), a Espanha (em 1936), sem falar da Alemanha (em 1933, o caso mais catastrófico de todos).

Com o fim da Segunda Guerra Mundial, uma segunda vaga se espraiou na Europa, na Ásia, na América Latina, pelo menos até 1962. Da Alemanha à Itália, da Áustria ao Japão, a democracia firmou-se nesses países até então relapsos.

A segunda contravaga terá começado em 1958 e durado até 1962. A América Latina foi a "loca infecta" dessa regressão, com o Brasil (1964), a Argentina (1966), o Equador (1972), o Chile e o Uruguai (1973) a serem tomados pelo autoritarismo.

Aquela manhã fria em Lisboa inaugurou a reversão da reversão. Para ficarmos uma vez na América Latina, a democracia retornou ao Equador (1979), ao Peru (1980), à Bolívia (1982) e ao Brasil (1985).

Por outras palavras: o pedigree internacional da Revolução dos Cravos é reconhecido e aplaudido. Sua influência benigna também. Mas nos momentos de festa há sempre vozes de desânimo que olham para a data e lamentam o que ela significa.

Alguns têm razões para isso: falo dos extremos, cada vez mais minoritários, que lamentam o fim da ditadura —ou, em alternativa, o fato de Portugal não ter inaugurado outra.

Mas eu não falo dos casos extremos. Falo até de moderados que persistem em projetar na democracia o que ela não pode comportar. Democracia é igualdade, para uns. É riqueza, para outros. É reconhecimento, justiça, fraternidade. Citando o título do filme, é tudo em todo lugar ao mesmo tempo. Se a perfeição não foi atingida em cada um desses valores, a democracia falhou.

O sociólogo Ralf Dahrendorf, ao confrontar-se com as revoluções de 1990 que libertaram o Leste Europeu do comunismo, já tinha detectado esse problema eterno. Se a revolução é o momento em que o povo faz amor com a história (obrigado, Sartre), há quem não tolere a rotina conjugal que se instala quando a febre passa. As expetativas extravagantes dão lugar ao desencanto quando a utopia teima em não chegar.

Mas a utopia nunca chega, afirmava Dahrendorf. Se a revolução enterra a ditadura e se a democracia enterra a revolução, permitindo a partir daí remover maus governos sem derramamento de sangue, ambas já terão cumprido o seu papel.

Tal como o 25 de Abril cumpriu o dele: o Estado Novo terminou em 1974, praticamente sem resistência, e ninguém suspira por ele, muito menos com a sua restauração. Além disso, se a democracia é o arranjo possível para remover governos através de eleições limpas e livres, convém procurar o que falta ao país noutros lugares, não nas urnas que sempre funcionaram sem engulhos.

Falta muito, admito, mesmo sabendo que o país de 2024 é irreconhecível aos olhos de 1974. Em qualquer indicador relevante —educação, saúde, bem-estar, proteção social, emancipação feminina etc.—, existe um abismo entre esses dois mundos.

Mas nem tudo é perfeito. O fraco crescimento econômico, os baixos salários, a dívida pública (beirando os 100% do PIB), a taxa elevada de pobreza e de desigualdade em comparação com os nossos parceiros europeus —tudo isso é motivo de desânimo. A fraca participação política e a erosão na confiança das instituições democráticas são a expressão disso.

Desânimo, no entanto, não significa desistência. Significativamente, o Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa realizou um estudo intitulado "50 anos de democracia em Portugal: mudanças e continuidades geracionais". O objetivo dos pesquisadores é permitir que sejam os portugueses a fazer um balanço do regime, sem os habituais mandarins que, repito, gostam de falar em seu nome.

Os resultados não me surpreendem. A esmagadora maioria (69%) tem uma opinião mais positiva que negativa da revolução; 24% ficam em cima do muro; 7% têm uma opinião mais negativa que positiva. Mas é entre os mais jovens, de 16 a 34 anos, que o 25 de Abril é acolhido com entusiasmo: 73% aplaudem a data (só 6% a recusam).

Moral da história?

Em 1975, chamados às urnas, os portugueses mostraram mais clarividência que as vanguardas terceiro-mundistas que os desejavam pastorear. Cinquenta anos depois, nada mudou: o gosto pela liberdade é um hábito que não se perde.

Nestas matérias, convém lembrar o verso da canção "Grândola Vila Morena", que pôs em marcha o fim da ditadura. "O povo é quem mais ordena"?

Precisamente.

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