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11/02/2012 - 02h30

Vândalos revolucionários: fim da vida, começo da sobrevivência

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AMOR ELETREBI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Mais de 74 egípcios foram assassinados em confrontos de arruaceiros depois de um jogo de futebol", disse o locutor do telejornal a que todos estavam assistindo nos cafés do centro da cidade. Algumas pessoas continuaram a fazer o que estavam fazendo, sem dizer uma palavra, agindo como se não tivessem ouvido; outras não conseguiam desviar os olhos da tela do televisor; e ainda outras apanharam os celulares para conversar com os amigos e tentar descobrir o que estava acontecendo.

Por volta das três da manhã, na madrugada posterior aos confrontos, encontrei um grupo de 30 pessoas marchando silenciosamente pela rua, como fantasmas escuros. Estavam a caminho da estação ferroviária, onde receberiam os torcedores arruaceiros em sua chegada de Port Said, o local da partida.

"Só erguerei a bandeira do meu time, e não a do Egito, até conversar com meus irmãos e descobrir o que realmente aconteceu lá", disse um dos jovens arruaceiros, que em seguida começou a gritar lemas contrários às pessoas de Port Said, a cidade do time adversário. "É exatamente isso que eles querem", declarou outro arruaceiro, mais velho. "Aos diabos com o futebol, desde que nós egípcios derramemos o sangue uns dos outros". Os demais torcedores ecoaram: "Aos diabos com o futebol".

Na estação ferroviária, alguns milhares de torcedores aguardavam o retorno dos heróis vitoriosos. Havia torcedores arruaceiros e não arruaceiros, ativistas e pessoas que nada tinham a ver com o futebol. Mães, irmãs e irmãos chegaram de mãos dadas, caminhando em meio à multidão com olhos avermelhados, fatigados mas sem lágrimas. Haviam passado a noite toda sem ouvir notícias de parentes. E estavam lá para provavelmente serem notificados de sua morte.

O trem chegou e as pessoas se descontrolaram. Começamos a cruzar os trilhos aos saltos, correndo para a plataforma. O trem foi cercado e sacudido, tão logo parou, e algumas pessoas subiram nele e caminhavam no topo dos vagões, sem ter para onde ir. Os heróis desembarcaram, chorando e gritando de dor. (A maioria deles passara horas gritando de dor no trem.) Alguns simplesmente recusaram os abraços, desejando ter morrido com os demais.

"Digam bem alto, digam sem medo: abaixo o governo militar!", era o cântico que ecoava pela estação enquanto os arruaceiros desembarcavam do trem em seu retorno. Ninguém tinha dúvidas quanto a que lema entoar, àquela altura.

Os cânticos ecoavam vigorosamente na estação, entremeados por gritos e choro histérico.

"Pessoas morreram; vi pessoas morrendo", disse um dos arruaceiros retornados, irrompendo em lágrimas. Outro homem acrescentou, enquanto tentava acalmá-lo: "Pelo menos você sobreviveu". Mas o arruaceiro choroso rebateu: "Preferiria não ter sobrevivido. Preferiria ter morrido lá com eles".

Todas as histórias que ouvi dos torcedores de retorno diziam a mesma coisa, e os vídeos confirmam a alegação: a situação foi inteiramente orquestrada pela polícia e pelas forças armadas, em múltiplos níveis, começando pela decisão de não revistar os torcedores na entrada, e seguindo pela abertura dos portões do gramado aos torcedores adversários pouco depois do final da partida, pela não interferência da polícia quando os choques começaram e pela decisão de apagar as luzes, dois minutos mais tarde, criando um caos escuro, ou melhor, um caos no escuro.

E fazia perfeito sentido para todos. A polícia e as forças armadas estavam se vingando dos torcedores arruaceiros, um bando de garotos que, armados de pedras e coqueteis Molotov, derrotaram as forças policiais e suas balas de borracha, gás lacrimogêneo e munição letal em muitos confrontos no ano passado. Foi praticamente um assassinato, um crime político com dimensão física.

"A cidade está com jeito de cidade fantasma", disse um taxista, olhando as ruas. "O que você quer dizer?", perguntei. Ele respondeu: "ªVeja, ninguém está falando, todos tristes, cabisbaixos. A notícia da morte de todas aquelas pessoas no jogo de futebol nos deixou mais tristes que nunca".

No que tange ao papel que os torcedores arruaceiros exerceram na revolução até agora, é o fim da vida e o começo da sobrevivência.

AMOR ELETREBI, 23, poeta e ativista egípcio, é colaborador da rede Al Jazeera.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

 

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