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02/10/2012 - 18h51

Jovens israelenses usam tatuagens para lembrar vítimas do Holocausto

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JODI RUDOREN
DO "NEW YORK TIMES", EM JERUSALÉM

Quando Eli Sagir mostrou a seu avô, Yosef Diamant, a nova tatuagem que tinha feito em seu antebraço esquerdo, ele abaixou a cabeça para beijá-la.

Diamant teve a mesma marca, o número 157622, tatuado permanentemente em seu próprio braço pelos nazistas em Auschwitz. Quase 70 anos mais tarde, Eli Sagir fez a tatuagem dela num estúdio de tatuagem no centro da cidade, depois de fazer uma viagem à Polônia com sua classe no colégio. Na semana seguinte, sua mãe e seu irmão também tiveram os seis algarismos inscritos nos braços deles. Este mês seu tio seguiu o exemplo deles.

"Minha geração não sabe nada sobre o Holocausto", disse Sagir, 21 anos, que tem a tatuagem há quatro. "Você conversa com as pessoas e elas pensam que é como o êxodo dos hebreus do Egito --história antiga. Decidi fazer a tatuagem para lembrar à minha geração: quero contar às pessoas a história do meu avô e a história do Holocausto."

Os descendentes de Diamant fazem parte de um punhado de filhos e netos de sobreviventes de Auschwitz, aqui em Jerusalém, que optaram pela medida extrema de inscrever em seus próprios corpos as marcas dos dias mais sombrios da história. Com o número de sobreviventes em Israel tendo caído de 400 mil, dez anos atrás, para cerca de 200 mil hoje, instituições e indivíduos estudam as melhores maneiras de recordar o Holocausto, tão essencial para a fundação e a identidade de Israel, depois que seus sobreviventes tiverem desaparecido.

Viagens do tipo "ritos de passagem" para os campos de extermínio, como a que Sagir fez, hoje são de praxe para os alunos do ensino médio. O memorial do Holocausto em Jerusalém, Yad Vashem, e outros museus estão tentando tornar suas exposições mais acessíveis, recorrendo a relatos individuais e efeitos especiais.

Debate-se seriamente se essa abordagem trivializa símbolos por muito tempo vistos como sagrados e se a mensagem principal deve ser sobre a importância de um Estado judaico autônomo, para prevenir um genocídio futuro, ou se deve ser uma mensagem mais universal sobre racismo e tolerância.

"Estamos passando de memória vivida para memória histórica", observou Michael Berenbaum, professor da Universidade Judaica Americana em Los Angeles e um dos principais estudiosos da rememoração do Holocausto. "Estamos naquela transição. Esta (as tatuagens) é uma forma declarada e direta de fazer a transição."

Ele próprio filho de sobreviventes, Berenbaum disse que "reproduzir um ato que destruiu o nome deles e os converteu em número não seria minha primeira escolha, nem a segunda ou a terceira", mas, ele acrescentou, "com certeza é mais interessante que algumas das outras tatuagens que alguns jovens fazem em sua pele".

É sem dúvida alguma uma decisão intensamente pessoal que frequentemente provoca interações agressivas com desconhecidos ofendidos com a apropriação daquele que talvez seja o símbolo mais profundo do modo como o Holocausto desumanizou suas vítimas. O fato de a tatuagem ser proibida pela lei judaica --alguns sobreviventes temeram durante muito tempo, sem razão, que os números tatuados os impediriam de ser sepultados em cemitérios judaicos-- torna o fenômeno mais perturbador para alguns, o que pode ser parte da ideia toda.

"É chocante quando você vê o número na mão de uma moça", disse Sagir. "É muito chocante. Você se sente obrigado a perguntar 'por que?'."

De acordo com a "Enciclopédia do Holocausto" do Museu Memorial do Holocausto americano, a tatuagem dos números dos prisioneiros foi introduzida em Auschwitz no outono de 1941 e no adjacente campo de Birkenau no mês de março seguinte. Aqueles foram os únicos campos a adotar a prática, e não se sabe ao certo quantas pessoas foram marcadas, algumas no peito, mas a maioria no antebraço esquerdo.

Apenas os prisioneiros considerados aptos para trabalhar eram tatuados, de modo que, apesar da degradação, em alguns casos os números eram motivo de orgulho, principalmente os números menores, que indicavam que a pessoa teria sobrevivido a vários invernos brutais no campo. "Todo o mundo trata com respeito os números de 30.000 a 80.000" escreveu Primo Levi em sua autobiografia seminal, "Survival in Auschwitz", descrevendo as tatuagens como parte da "demolição de um homem".

Depois da guerra, alguns sobreviventes de Auschwitz se apressaram a remover as tatuagens com cirurgias ou passaram a escondê-las sob roupas de manga longa. Com o passar das décadas, outros usaram seus números na loteria ou como senhas.

A médica Dana Doron, 31 anos e filha de uma sobrevivente, entrevistou cerca de 50 sobreviventes tatuados para um novo documentário israelense, "Numbered" (Numerado), que ela co-dirigiu com o fotojornalista Uriel Sinai. O filme terá sua première nos Estados Unidos no próximo mês, no Festival Internacional de Cinema de Chicago.

Doron contou que, quando perguntou a sobreviventes se seus amados beijavam o número, como poderiam beijar uma cicatriz, "alguns me olharam como se quisessem dizer 'você enlouqueceu?', e outros responderam 'é claro'".

"Para mim, é uma cicatriz", disse Doron, que se interessou pela numeração quando extraiu sangue de um braço tatuado numa sala de emergência. ''O fato de jovens estarem optando por ser tatuados é, para mim, um sinal de que ainda carregamos a cicatriz do Holocausto."

"Numbered" acompanha Hanna Rabinovitz, uma mulher de meia-idade que tatua o número de seu pai em seu tornozelo após a morte dele. O filme também conta a história de um programador de computadores de 28 anos, Ayal Gelles, e seu avô, Avraham Nachshon, de 86, ambos com o número A-15520 tatuado no braço.

"É como uma herança ou algo assim", Gelles explicou. "Acho que é provocante. Todo o mundo fica chocado, num primeiro momento."

Gelles disse que teve um lampejo quando viu vacas sendo marcadas a ferro numa fazenda na Argentina. A experiência o levou a fazer a tatuagem e a adotar a dieta vegana. Ele não contou a seu avô sobre seu plano. "Se eu tivesse sabido, teria dito a você para não fazer", o avô disse ao neto numa noite recente.

"Sonho com isso todas as noites", Nachshon falou ao contar sua história do Holocausto, que inclui vários meses passados em Birkenau, onde sua mãe e irmã foram mortas na câmara de gás. "Muitas vezes, no meu sonho, estamos fugindo dos alemães. Às vezes passo a noite inteira correndo. Talvez desta vez eles não me peguem."

Nachshon nada, pratica ioga ou corre na esteira ergométrica todas as manhãs, retornando para casa às 14h para alimentar os gatos do bairro e passar horas diante da televisão. Duas vezes por semana Gelles vem jantar com seu avô no apartamento deste em Tel Aviv e eles assistem à TV juntos.

"Toda vez que vejo o número, é um lembrete para eu telefonar a meu avô", Gelles revelou. "Tenho dificuldade em sentir uma ligação com pessoas que não conheço, lugares para os quais não fui e essa coisa chamada o Holocausto. Sinto uma ligação maior com meu avô."

O israelense que tatuou o número de Livia Rebak, 4559, em seu filho, Oded Rebak, e seu neto, Daniel Philosof, o fez sem cobrar.

Era uma sexta-feira. Rebak, artista plástico de 56 anos que trabalha com vidro, vive em Ottawa, Canadá, e estava visitando familiares quando foi tatuado, dois anos atrás, levou flores para sua mãe no shabat. "Num primeiro momento, ela ficou realmente perturbada com isso", ele contou. "Quando expliquei as razões pelas quais fiz, choramos juntos. Eu disse 'você está sempre comigo'."

Os dez descendentes tatuados que foram entrevistados para este artigo apresentaram os mesmos motivos para o que fizeram: queriam ficar íntima e eternamente vinculados com seu parente sobrevivente do Holocausto. E queriam concretizar o mantra "nunca esquecer" com algo que provocasse perguntas e conversas constantemente.

Sagir, que é caixa num minimercado no centro da turística Jerusalém, disse que lhe perguntam sobre o número dez vezes por dia. Um homem disse que ela é "patética", dizendo que ela estava tentando ser seu avô e assumir o sofrimento dele. Sagir se recorda de uma policial que lhe disse: "Deus criou o esquecimento para que possamos esquecer". "Eu disse a ela: 'Por causa de pessoas como você, que querem esquecer o que aconteceu, vamos sofrer a mesma coisa de novo'."

Numa sexta-feira recente Sagir acompanhou seu tio, Doron Diamant --40 anos, carpinteiro e pai de quatro filhos-- a um estúdio de tatuagem. Ele foi o quinto descendente de Yosef Diamant a ser tatuado. Yosef morreu no ano passado, aos 84 anos.

O trabalho foi feito em 15 minutos e custou US$40. Quando o tatuador, um imigrante russo, falou, brincando, que não era "patriótico o suficiente" para dar um desconto, Diamant ficou furioso em silêncio. "Esta é a razão pela qual ele está aqui, é a razão desta tatuagem, é o que este número representa", disse Diamant. "Conseguimos este país por causa dos sobreviventes."

Tradução de Clara Allain

 

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