Descrição de chapéu The New York Times

Sem precedente, governo Trump deixa escritores com páginas em branco

MATT FLEGENHEIMER
DO "NEW YORK TIMES", EM WASHINGTON

Faltavam poucos dias para a eleição, em novembro passado. Mais uns diazinhos pequenos até Donald Trump voltar para sua torre dourada para lançar um programa de nicho na TV e encher seu feed do Twitter, que andava vazio, com manifestações de desespero intercaladas por muitos pontos de exclamação.

Foi quando um agente literário procurou seu cliente para propor uma ideia: que tal alguma coisa sobre a "Casa Branca de Trump que não chegou a acontecer"?

O escritor —Steve Israel, então deputado democrata por Nova York e hoje trabalhando sobre sua terceira sátira política— redige uma proposta de livro, "Trumplandia".

A trama incluiria um encontro furtivo com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, foguetes disparados nas mídias sociais durante a madrugada a partir de Mar-a-Lago e um alto cargo na administração confiado a Ben Carson, hoje secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, que certa vez sugeriu através de um terceiro que não estava qualificado para comandar uma agência federal.

"Altamente implausível", disse o agente na época, descrevendo a proposta de livro apresentada.

"Meu pseudônimo literário poderia ser Nostradamus", fala Steve Israel hoje.

Nestes seis primeiros meses, washingtonianos de várias classes vêm sofrendo sob o domínio do presidente Trump: senadores, verificadores de fatos, pessoas que gostam de dormir.

Mas, em uma cidade tão encantada com sua própria história, com tanta prática de projetar um pouco-caso de quem já viu e viveu tudo, estes tempos vêm sendo especialmente irritantes para certos tipos de contadores de histórias.

Romancistas se demoram sobre páginas em branco. Historiadores procuram em vão algum precedente, e depois desistem. Mesmo participantes em escândalos passados têm dificuldade em acompanhar a narrativa.

"Ainda é cedo. Estamos sendo apresentados aos personagens", ponderou John Dean, ex-advogado da Casa Branca e ator coadjuvante no escândalo de Watergate, na administração Nixon, e autor frequente nas décadas passadas desde então. "Ainda não sabemos bem como esta história vai se desenrolar —se será uma comédia ou uma tragédia."

Mas ele até tem alguma base para arriscar um palpite. Ele se confessou culpado de um crime, no passado.

No presente, porém, os elementos necessários aos dois gêneros literários estão se posicionando. A história a sair disso tudo pode ser uma espécie de cruzamento de romance de Allen Drury com peça de Shakespeare, enquanto os retoques finais ficarão a cargo dos produtores da rede E! Entertainment.

Intrigas no exterior. Alianças desgastadas no Capitólio. Um filho que mete os pés pelas mãos. Tuites para tentar consertar os estragos.

Há picuinhas a serem resolvidas, e editores autocontratados para fazê-lo. Para onde vai essa narrativa? Em qual ato já estamos?

"É como uma telenovela sem sexo e sem humor", resmungou Matt Latimer, escritor e ex-redator de discursos do presidente George W. Bush. (Alguém chama sua atenção para o fato de que esta administração ainda é jovem.)

Há quem se irrite com os enredos repetitivos e que não andam para frente, como os esforços hesitantes dos republicanos em aprovar uma nova lei de saúde.

Outros se perguntam se alguns elementos não seriam um pouco insossos. É o caso da linha de assunto da corrente de e-mails de Donald Trump Jr. no ano passado sobre uma reunião com uma advogada ligada ao Kremlin: "Rússia-Clinton-confidencial".

A arma de Tchekov não foi feita para ser disparada para o alto, como um sinalizador.

"A política americana deixou o satirista sem saída a não ser a porta da rua", disse Christopher Buckley, autor de frases de efeito politicamente carregadas como "obrigado por fumar".

Mas os roteiristas continuam a tentar, procurando analogias que consigam mastigar passado e presente em igual medida.

É Irã-contras com bronzeamento a jato. É Monica Lewinsky com um covfefe gigante.

É "O Poderoso Chefão", só que desta vez, não se sabe por que, há um genro silencioso encarregado da paz no Oriente Médio.

Às vezes a inspiração vem de recantos esdrúxulos da mente. William S. Cohen —ex-secretário da Defesa na administração Bill Clinton, senador republicano do Maine e romancista ocasional— se lembrou recentemente de um pôster pendurado em um banheiro do Comitê do Senado sobre as Forças Armadas na época em que ele trabalhava para o governo. O pôster mostrava soldados soviéticos em marcha, e a legenda dizia: "Venham nos visitar antes que a gente vá visitar vocês".

"Bem", disse Cohen ao telefone, "os russos vieram nos visitar."

WATERGATE

Humoristas de programas de TV noturnos vêm buscando traçar comparações mais frequentemente com a era de Nixon, com graus diversos de êxito. Em março, John Oliver, que apresenta o "Last Week Tonight", da HBO, descreveu o caso Trump-Rússia como um "Watergate Burro" —um escândalo potencial "com todas as intrigas de Watergate, mas com uma diferença: todos os envolvidos são péssimos no que fazem".

Ele está achando que a comparação com Watergate continua apta, lamentavelmente.

"Infelizmente, era para ser uma brincadeira limitada", Oliver disse a Stephen Colbert no "The Late Show" na semana passada, "mas as últimas notícias a estão tornando cada vez mais relevante. Não é o que costuma acontecer com piadas."

O rótulo comparativo parece ter ofendido John Dean, aquele da infâmia nixoniana, por associação. "A maioria das pessoas não entende que Watergate foi uma estupidez tremenda", ele disse. "Foi tudo muito desajeitado."

Sem dúvida. Mas raramente até agora a falta de jeito tem sido tão generalizada, caracterizando mesmo os gestos mais simples de um presidente que, sem entender a necessidade de um subtexto, tende a ler em voz alta as orientações do diretor da peça.

Uma cena:

Por um instante esta semana, pareceu que a aprovação da lei de saúde no Senado seria posta em risco por um coágulo sanguíneo no Arizona encontrado em um senador que foi herói de guerra, John McCain, de quem Trump certa vez escarneceu por ter sido capturado em combate.

Dessa vez o presidente pareceu ansioso por fazer o papel do narrador.

"Ele é uma voz ranheta em Washington", ele disse a respeito de McCain, em algo que se aproximou de um elogio. Mas então concluiu: "Além disso, precisamos do voto dele."

Na terça-feira, os republicanos estavam precisando do voto de McCain e de vários outros com os quais não puderam contar. Ninguém disse que Trump era um narrador confiável.

Mas lá estava o inesperado outra vez, um desvio imprevisto neste capítulo mais peculiar, enviando a capital por um beco sem saída tão pouco familiar que o senador Jerry Moran, do Kansas —sim, isso mesmo!— exerceu um papel decisivo na derrota da legislação que os republicanos vinham prometendo nos últimos sete anos.

Talvez a história continue assim, avançando célere em trechos distintos, como uma minissérie, até se encerrar no episódio final que possivelmente só chegue em janeiro de 2025.

Steve Israel, o ex-parlamentar e hoje romancista, havia imaginado outro final da história —uma fantasia liberal ao quadrado.

A trama do livro que ele propôs tem sua conclusão no dia da posse presidencial em 2021. Ferido pelos escândalos e sentindo saudades de sua vida de magnata imobiliário, Trump optou por não tentar um novo mandato. Já começaram as obras da biblioteca presidencial Trump em Palm Beach, Flórida.

Enquanto o helicóptero decola, levando o ex-presidente embora, o protagonista do livro, um secretário de imprensa de Trump chamado Jared Gold, recebe um e-mail: "O presidente Sanders quer falar com você".

Tradução de CLARA ALLAIN

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.