Descrição de chapéu The New York Times

Por ordem de ditador, Cazaquistão troca alfabeto cirílico pelo latino

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Crédito: Shamil Zhumatov - 22.nov.2017/Reuters Nota de 500 tenges cazaques com alfabeto cirílico; ditador quer passar a usar alfabeto latino
Nota de 500 tenges cazaques com alfabeto cirílico; ditador quer passar a usar alfabeto latino

ANDREW HIGGINS
DO "NEW YORK TIMES", EM ALMATY (CAZAQUISTÃO)

Em seus 26 anos como o primeiro e único mandatário do Cazaquistão, Nursultan A. Nazarbayev vem conseguindo manter a Rússia ressurgente à distância e orientar-se nas águas geopolíticas turvas em volta de Moscou, Pequim e Washington, conservando boas relações com as três capitais.

Mas o líder autoritário parece ter perdido de repente seu talento para jogar com interesses divergentes, e a razão disso é uma questão que, à primeira vista, não envolve rivalidade entre grandes potências nem graves questões de Estado: o papel do humilde apóstrofo na escrita de palavras em cazaque.

Hoje a língua cazaque é escrita em uma versão modificada do cirílico, um legado do domínio soviético. Mas em maio passado Nazarbayev anunciou que o alfabeto russo será abandonado em favor de uma nova escrita baseada no alfabeto latino. Segundo ele, isso "será a realização dos sonhos de nossos ancestrais e também o caminho para o futuro das gerações mais jovens".

Mas a decisão trouxe à tona uma questão espinhosa: como escrever uma língua que não possui alfabeto próprio, mas sempre foi escrita com alfabetos importados.

A intervenção ardorosa do presidente na discussão acalorada sobre a nova escrita, além da solução que ele propôs —Nazabayev quer que sejam usadas muitos apóstrofos— chamaram a atenção a como virtualmente tudo nesta ex-república soviética, por mais possa ser pequeno ou obscuro, depende da vontade de um homem de 77 anos ou, pelo menos, dos que alegam falar em seu nome.

"Esse é o problema básico de nosso país: se o presidente fala alguma coisa, se ele simplesmente rabisca alguma coisa num guardanapo, todo o mundo tem que aplaudir", disse Aidos Sarym, analista político e membro de uma comissão de reforma da língua cazaque criada no ano passado.

Para ele, Nazarbayev merece elogios por ter transformado o Cazaquistão no país mais estável e próspero de uma região fustigada por turbulência política e decadência econômica. Mas a língua nacional, opinou Sarym, "é uma questão muito delicada que não pode ser ditada por autoridades".

Crédito: Nicholas Kamm/AFP O ditador do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, visita o presidente dos EUA, Donald Trump, na Casa Branca
O ditador do Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev, visita o presidente Donald Trump na Casa Branca

IDENTIDADE

O idioma nacional é uma questão muito delicada no Cazaquistão, como é o caso em muitos países independentes que se esforçam para criar um senso de identidade nacional depois de terem sido subjugados por uma potência estrangeira. Muitas pessoas no país, incluindo pessoas da etnia cazaque, ainda falam russo com frequência.

Mas, desde 1991, quando emergiu das ruínas da União Soviética como país independente, o Cazaquistão vem enxugando constantemente o legado da hegemonia política e cultural de Moscou.

O país substituiu o russo pelo cazaque como a língua principal da educação e do governo, colocou o inglês em pé de igualdade com o russo no ensino de línguas estrangeiras e produziu uma enxurrada de filmes e programas de TV falados em cazaque que festejam a cultura do país e suas tradições nômades, há muito tempo desaparecidas.

O processo de adoção do alfabeto latino, a ser concluído em 2025, é amplamente aplaudido, visto como afirmação necessária da independência completa da Rússia e da determinação do Cazaquistão de fazer parte do mundo maior. As principais objeções vieram da Igreja Ortodoxa Russa, em Moscou, e de pessoas de etnia russa que vivem no Cazaquistão.

Mas algo que vem sendo muito menos popular é a decisão tomada pelo presidente em outubro de ignorar os conselhos de especialistas e anunciar um sistema que utiliza apóstrofos para designar sons em cazaque que não existem em outras línguas escritas no alfabeto latino padrão.

"República do Cazaquistão", por exemplo, será escrito, em cazaque, "Qazaqstan Respy'bli'kasy".

Num país onde quase ninguém contesta o presidente publicamente, Nazarbayev está vendo sua política em relação a apóstrofos ser universalmente criticada.

Linguistas, que haviam recomendado que a nova escrita seguisse o exemplo do turco, que utiliza o trema e outros sinais fonéticos em lugar de apóstrofes, protestaram, dizendo que o sistema preconizado pelo presidente seria feio e impreciso.

"Ninguém sabe de onde o presidente tirou essa ideia péssima", disse Timur Kocaoglu, professor de relações internacionais e estudos turcos na Universidade Michigan State que viajou ao Cazaquistão no ano passado. "Os intelectuais cazaques estão dando risada e perguntando 'como vai ser possível ler qualquer coisa escrita desse jeito?'."

A escrita proposta "dói nos olhos", disse Kocaoglu.

TESTE

As queixas estão testando os limites do modo de governo de Nazarbayev: ele não admite qualquer oposição, mas costuma estar sintonizado com a vontade pública.

Assinalando uma possível disposição de mudar de rumo, um aliado influente do presidente, o presidente do Senado, Kassym-Jomart Tokayev, disse no mês passado que ainda era cedo para começar a usar apóstrofos em jornais e outras publicações, porque ainda não tinha sido tomada uma decisão final.

Depois de conduzir o Cazaquistão à independência, Nazarbayev, temendo uma reação da grande população de etnia russa no país, não atendeu imediatamente às reivindicações de nacionalistas, que queriam a retomada rápida do alfabeto latino.

Outros países recém-independentes e com idiomas de raiz turca, semelhantes ao cazaque, como Uzbequistão e Azerbaijão, pararam de usar o alfabeto cirílico. Mas a população russa nesses países era muito menor.

"Todos quisemos criar nossos próprios Estados e culturas, para escapar da União Soviética em queda", explicou Anar Fazylzhanov, vice-diretor do Instituto de Linguística em Almaty, a capital econômica e cultural do país. "Mas mudar o alfabeto seria politicamente muito mais difícil no Cazaquistão."

Nas últimas duas décadas, contudo, o equilíbrio demográfico mudou em favor dos cazaques étnicos, após a saída do país de muitos russos étnicos, que de cerca de 40% da população no momento da independência passaram a representar 20% hoje. Esse fato abriu o caminho para Nazarbayev endossar a proposta de abandonar o cirílico.

"O cirílico fazia parte do projeto colonial russo. Muitas pessoas enxergam o uso do alfabeto latino como uma iniciativa anti-imperialista", disse o comentarista político cazaque Dossym Satpayev.

MOSCOU

A Igreja Ortodoxa Russa e nacionalistas russos protestaram contra a iniciativa, que enxergaram como um ataque à cultura ocidental e uma rendição ao Ocidente.

Segundo especialistas informados sobre o assunto, o Cazaquistão chegou a receber relatórios de inteligência dizendo que o Parlamento russo estaria preparando uma declaração louvando Nazarbayev como grande estadista e suplicando que ele preservasse o alfabeto cirílico, para consolidar seu legado de líder que manteve a paz entre diferentes grupos étnicos.

A passagem para a adoção do alfabeto latino foi acelerada em abril, quando Nazarbayev criou uma Comissão Nacional para a Modernização da Sociedade. A comissão incluía um grupo de linguistas encarregados de estudar como devem ser transcritos os sons do idioma cazaque.

Como a língua cazaque inclui muitos sons que não são facilmente representados nos alfabetos cirílico ou latino sem sinais diacríticos adicionais, era preciso decidir se seria seguido o caso do turco, que utiliza o alfabeto latino mas emprega cedilha, til, braquia, pontos e outros sinais para assinalar a pronúncia das palavras, ou se seriam inventados sinais fonéticos alternativos.

Em agosto o comitê de linguistas propôs o uso de um alfabeto que seguisse em grande medida o modelo turco. Mas o gabinete do presidente declarou a proposta inviável porque os sinais usados no turco não existem nos teclados de tipo padrão.

A única razão citada publicamente por Nazarbayev para explicar por que ele não queria sinais fonéticos de estilo russo era que "não deve haver ganchos ou pontos supérfluos que não possam ser inseridos diretamente por um computador", segundo disse o presidente em setembro.

E ele opinou que o uso de sinais diacríticos para transcrever sons cazaques especiais causaria confusão quando as pessoas tentassem ler o inglês, em que as mesmas combinações de letras designam sons inteiramente diferentes.

Mas outros enxergaram outra motivação possível: Nazarbayev pode querer evitar qualquer sugestão de que o Cazaquistão esteja dando as costas à Rússia e abraçando a união pan-turca, uma ideia rejeitada pelas autoridades russas nos tempos czaristas e soviéticos.

Tradução de CLARA ALLAIN

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