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24/08/2011 - 23h00

Análise: América Latina, um comércio tóxico

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JOHN PAUL RATHBONE
ADAM THOMSON
DO "FINANCIAL TIMES"

Em meio à alta estonteante dos preços de commodities verificada nos últimos dez anos dois, duas exceções se destacam: a heroína e a cocaína.

Os dois produtos vêm desafiando a inflação de maneira comparável apenas ao que fazem os microprocessadores de computadores: as drogas estão mais baratas hoje, em termos reais, do que eram 20 anos atrás.

Essa é apenas uma ilustração de um fracasso global dos esforços para restringir a oferta de drogas ilegais. Embora a luta já tenha custado bilhões de dólares e milhares de vidas, o comércio de drogas e seus efeitos sobre os consumidores dos produtos mal foram afetados. A produção vem aumentando, e, com ela, o consumo global. De estimados 272 milhões de usuários de drogas ilegais em todo o mundo, mais ou menos 250 mil consumidores morrem todos os anos.

Os Estados Unidos ainda é o maior mercado mundial de drogas, e a Europa está rapidamente chegando perto. É cada vez mais aceito que a política de proibição conhecida como a guerra às drogas e que foi lançada 40 anos atrás pelo presidente americano Richard Nixon "fracassou" _nas palavras francas de um relatório recente da Comissão Global sobre Política para Drogas (endossada por três ex-presidentes latino-americanos e um ex-secretário-geral da ONU) e de um ex-diretor do Federal Reserve americano.

Tudo isso vem motivando muitas autocríticas em Washington e outras capitais ocidentais. Mas na América Latina, o maior centro de produção e comércio de drogas, as consequências desse fracasso continuam a acumular-se de modos que não chegam a ser devidamente notados em outras partes do mundo.

Desde que o presidente Felipe Calderón lançou uma guerra ao narcotráfico organizado no México, quatro anos e meio atrás, cerca de 40 mil pessoas já foram assassinadas no país. Na América Central, os níveis de violência, segundo algumas estimativas, são piores que os do Afeganistão ou Iraque.

A paz social e política está ameaçada. "Um tsunami de tráfico de drogas se abateu sobre a região", diz Kevin Casas-Zamora, ex-vice-presidente de Costa Rica e atual analista do Brookings, um instituto de estudos de Washington. O general Douglas Fraser, chefe do Comando Sul dos EUA, descreveu a criminalidade organizada alimentada pelo tráfico de drogas como a maior ameaça enfrentada pela América Central.

Poucos sugerem que a região esteja prestes a tornar-se uma coletânea de narco-Estados em que os governos sejam usurpados pelos cartéis, embora esse risco exista no caso da Guatemala, de Honduras e El Salvador, os países centro-americanos mais afetados. A maioria das economias de um continente que, no passado, era associado a calotes soberanos e hiperinflação, agora está em alta. Enquanto países desenvolvidos estão atolados em empréstimos grandes e crescimento baixo, a América Latina vem se tornando um motor da economia mundial, mais conhecida por suas economias em crescimento que pelo comércio de cocaína.

Mas a maioria das democracias latino-americanas é jovem. O México, a segunda maior economia da América Latina, fez sua transição democrática há apenas dez anos; o Brasil, a maior, há 25. Isso faz com que essas nações sejam especialmente vulneráveis à corrupção e violência.

Pelo menos os tempos em que os EUA "certificavam" países com base em sua capacidade de limitar a produção de drogas ficaram no passado. Hoje a maconha é a maior plantação da Califórnia cultivada para fins lucrativos, com vendas estimadas em US$14 bilhões por ano. A maioria dos 10 mil laboratórios ilegais de metanfetamina apreendidos em todo o mundo em 2009 ficava nos Estados Unidos.

Mesmo assim, o Ocidente continua a impor pressão considerável sobre a região. Os latino-americanos têm fortes razões próprias para reforçarem o cumprimento das leis. Os benefícios econômicos e políticos "seriam imensos", diz Agustin Carstens, presidente do banco central mexicano. O Banco Mundial estima que a violência e criminalidade custem à América Central 8% de seu PIB.

Mas muitos na região já estão fartos da abordagem tradicional, que foca a criminalização e repressão, mas tem poucos resultados positivos a apontar. Na realidade, o consumo local de drogas vem crescendo; hoje o consumo de cocaína na América Latina é quase igual ao europeu, embora ainda equivalha a metade do consumo americano.

Para começar, a intensidade da violência que sempre acompanha o narcotráfico e as tentativas de reprimi-lo é grotesca, incluindo decapitações, esquartejamentos e massacres aleatórios de inocentes. El Salvador, o país mais sangrento da região, teve 71 homicídios por 100 mil pessoas em 2010, segundo estatísticas nacionais; o Brasil, 25. A título de comparação, o índice de homicídios nos EUA não chegou a seis por 100 mil pessoas, e o da Europa não chegou a dois.

Em segundo lugar, o combate aos traficantes impõe um ônus pesado a países que não possuem os recursos que o mundo desenvolvido vê como sendo naturais e dados. O continente latino-americano continua a ser uma das regiões mais desiguais do mundo. Mesmo no México, que integra a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o clube dos países ricos, o governo define o índice de pobreza nacional em sendo de 46%.

Em terceiro lugar, o combate ao narcotráfico impõe às instituições policiais e judiciárias uma carga que supera sua capacidade. A polícia mexicana foi concretamente balcanizada pela Constituição, de modo que há forças separadas para os 32 Estados mexicanos e cada um dos 2.300 municípios do país. Em algumas polícias centro-americanas, os policiais são obrigados a comprar balas com seu próprio dinheiro.

Muitas instituições de países mais ricos teriam dificuldade em combater uma indústria transnacional altamente sofisticada e implacável, que, segundo estimativas da ONU, gera US$85 bilhões anuais em lucros apenas da cocaína _o equivalente a seis vezes os ganhos brutos da Coca-Cola no ano passado.

"Combater corrupção e drogas é como usar um apagador de borracha", diz Malcolm Deas, da Universidade Oxford, historiador da Colômbia que já prestou assessoria aos presidentes desse país. "A borracha sempre fica suja, e parte dessa sujeira acaba passando para o papel."

Em todo o mundo está começando a ser reconhecido o fato de que as políticas proibicionistas do século passado não vêm funcionando _e, enquanto as drogas que as pessoas querem consumir forem ilegais e, portanto, forem fornecidas por empreendedores ilegais, é pouco provável que funcionem.

Mesmo a presença de 100 mil dos soldados mais bem treinados, equipados com armas das mais sofisticadas, não tem ajudado muito a estancar o fluxo de opiáceos do Afeganistão, responsável por cerca de dois terços da produção mundial de heroína. O mau tempo e doenças das plantações ajudaram mais a reduzir o suprimento no ano passado do que qualquer esforço por parte de tropas lideradas pela Otan ou policiais afegãos.

Quanto à América Latina, a única história de sucesso até agora vem sendo a da Colômbia, e apenas se ela for avaliada pela queda do índice de homicídios, e não pelas exportações de drogas ilegais. Além disso, o êxito de Bogotá deveu-se a condições que não poderiam ser reproduzidas em outros lugares.

Para começar, houve um grande fluxo de receita dos Estados Unidos. Os US$6 bilhões gastos com o plano ainda em curso, o Plan Colombia, de ajuda no combate ao tráfico e à insurgência, equivalem a cerca de 6% do PIB colombiano em 2000 (o ano em que o esquema nasceu). Contrastando com isso, a iniciativa americana equivalente no México vale US$1,4 bilhão, menos de 0,2% do PIB mexicano de 2010.

Em segundo lugar, nos últimos 20 anos Bogotá fez um esforço sustentado e quase sobre-humano, que custou as vidas de grande número de policiais e juízes. A Colômbia se beneficiou do fato de ter uma polícia unificada quando começou a enfrentar seriamente o problema do crime organizado; isso é algo que inexiste em muitos outros países. "Se as forças policiais de um país estão divididas, os traficantes simplesmente as vão eliminando uma a uma", observou o general Oscar Naranjo, chefe da polícia colombiana.

Em terceiro lugar, os EUA e a Europa forneceram treinamento em campo e inteligência na Colômbia, algo que seria inviável na maior parte da América Latina. Quando, em 2009, o então presidente colombiano Álvaro Uribe concordou em permitir o uso das bases aéreas colombianas por militares dos EUA para ajudarem forças locais a caçarem traficantes, o fato desencadeou protestos em toda a região contra o imperialismo "ianque". A Constituição mexicana proíbe tropas estrangeiras de atuarem no país, embora, recentemente, alguns poucos membros aposentados do exército americano tenham sido enviados para o país para se desviarem dessas leis, segundo o "New York Times".

Finalmente, mesmo quando um trabalho de repressão é bem-sucedido, ele não faz mais do que empurrar a violência e o caos para outros países. "Quanto maior é o nosso êxito com a interdição, mais o crime organizado se desloca para outros lugares", diz a presidente de Costa Rica, Laura Chincilla.

Mais e mais pessoas vêm pedindo que a política antidrogas seja repensada radicalmente _e não são apenas libertários e hippies que o vêm fazendo.

Os EUA, por exemplo, puderam ignorar durante muitos anos os efeitos piores de seu problema. A atitude na prática era que, enquanto não houvesse bombas explodindo ou tiros sendo disparados em Washington, Nova York ou Los Angeles, a violência não tinha importância. Em um mundo mais globalizado, porém, e com balas sendo disparadas para todo lado no vizinho México, Washington se vê cada vez mais na defensiva, diante da possibilidade de a violência extravasar da fronteira.

Não está claro que medidas os EUA deveriam tomar. Dedicar mais dinheiro ao problema é improvável, em vista do estado das finanças públicas dos EUA. As campanhas de prevenção do consumo de drogas também têm um histórico de desempenho fraco, a despeito das expectativas sempre altas. Para o professor Mark Kleiman, autor do recém-lançado "Drugs and Drug Policy: What Everyone Needs to Know" (Drogas e política de drogas - o que todos precisam saber), as campanhas de prevenção têm custo moderado, mas não são muito eficazes.

A discussão da legalização das drogas atola nos temores legítimos de que o índice de dependência de drogas possa crescer; serão precisos anos de estudos para que essa questão seja mais bem compreendida.

Uma alternativa promissora e de baixo custo seria limitar o fluxo de armas que saem dos EUA para o sul. Recentemente o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, lamentou o fato de que armas de fogo desmontadas podem ser despachadas para seu país pelo serviço Federal Express, onde elas são remontadas. Até 70% das armas apreendidas no México vêm dos Estados Unidos.

Mas essa discussão nunca decola de fato devido ao caráter delicado dessa questão para muitos americanos, que declaram seu direito constitucional de portar armas de fogo. Como disse o presidente Calderón em visita a Washington, em março: "Respeito a Segunda Emenda, mas estamos pedindo: não vendam armas a criminosos mexicanos".

Alguns na região acreditam que, enquanto eles próprios tomam medidas para combater o problema, o Ocidente parece estar pouco disposto a fazer sacrifícios. O México, por exemplo, iniciou um processo de reformas policiais que vai exigir modificações constitucionais para entrar em vigor; enquanto isso, a proibição pelos EUA das vendas domésticas de fuzis semi-automáticos, que expirou em 2004, ainda não foi reinstaurada. Como observou Carlos Slim, o magnata mexicano das telecomunicações que é o homem mais rico do mundo; "É injusto que os países produtores de drogas fiquem com todos os problemas, enquanto os países consumidores guardem todos os lucros".

Não existe solução mágica que seja capaz de solucionar o problema das drogas. Mas muitos na região sentem que quanto mais tempo os países ocidentais consumidores se abstiverem de assumir um papel significativo na redução da violência extrema associada às tentativas de frear o desejo de seus cidadãos de consumirem drogas ilícitas, mais claro ficará que eles têm as mãos manchadas de sangue.

Como disse o relatório da Comissão Global sobre Política para Drogas, as forças de segurança e os traficantes estão envolvidos em uma espécie de corrida armamentista. "É preciso romper o tabu em torno do debate e da reforma. O momento de agir é agora."

Tradução de Clara Allain

 

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