Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
15/09/2011 - 18h21

Medidas contraterrorismo dos EUA influenciaram crise de fome na Somália

Publicidade

MADELEINE BUNTING
DO "GUARDIAN"

Nos últimos três meses, 150 mil pessoas chegaram ao campo de refugiados de Dadaab, no norte do Quênia. Cerca de 80% delas são mulheres e crianças, e muitas caminharam cem quilômetros para chegar a este campo enorme e superlotado que, com 440 mil habitantes, já é a terceira maior cidade do Quênia.

É só isso o que conseguimos ver da fome na Somália: as pessoas que conseguem sair. Os flagelados na própria Somália estão em grande parte fora do alcance das câmeras de televisão e das agências humanitárias. Esta é uma catástrofe que o mundo não está tendo dificuldade em esquecer.

Na semana passada os números previstos subiram para espantosas 750 mil pessoas que podem morrer na Somália até o fim do ano. É mais que o dobro do número de mortos na fome generalizada anterior, no início dos anos 1990, se desespera Mark Bradbury, especialista em Somália no Instituto do Vale do Rift.

Bradbury diz que, 20 anos atrás, o conflito na Somália era mais intenso, formulando a pergunta crucial: "Por que o número provável de mortos é tão mais alto agora?".

Abdurashid Abikar/France Presse
Milhares de Refugiados somalis esperam distribuição de alimento em acampamento na região de Mogadício
Milhares de Refugiados somalis esperam distribuição de alimento em acampamento na região de Mogadício

Depois da fome na Etiópia em meados dos anos 1980, houve muitas declarações de que isso nunca mais deveria se repetir. Desde então foram investidos milhões de dólares em sistemas de monitoramento e previsão de fomes generalizadas.

Esta é uma região com propensão à insegurança alimentar, mas a lição da Etiópia, um quarto de século atrás, foi que não são desastres naturais --como uma seca-- que causam fomes generalizadas, mas o agravamento deles por conflitos.

As agências humanitárias estão rasgando os cabelos, com culpa e angústia. "Trata-se de uma quebra catastrófica na responsabilidade coletiva do mundo", declarou a Oxfam.

Mas o sistema de previsão funcionou, tanto que avisou sobre a fome iminente um ano atrás. Ademais, a resposta pública ao apelo lançado vem sendo generosa, especialmente a resposta do governo britânico. Então por que é provável que esta crise alimentar se torne a pior fome generalizada na história da Somália?

EUA INFLUENCIARAM FOME

O número de mortos previstos não chegou ao primeiro lugar dos noticiários da televisão na semana passada. As atenções estavam voltadas ao décimo aniversário do 11 de setembro.

Mas algo que é quase sempre ignorado --exceto por observadores de longa data da Somália-- é que a situação trágica desse país está ligada ao 11 de setembro e ao modo em que a guerra ao terror moldou a política externa dos Estados Unidos.

Na verdade, quando os historiadores refletirem sobre as primeiras décadas do século 21, vão perceber que, além do Afeganistão e do Iraque, também a Somália pagou um preço colossal em vidas humanas como consequência da guerra americana ao terror.

As mortes no Iraque são provocadas por bombas, e as da Somália, pela fome, mas ambas são consequências diretas do extremismo violento desencadeado pela agressão norte-americana.

EXTREMISTAS REJEITAM ONGS

A catástrofe da Somália diz respeito a como o chamado "espaço humanitário" --os princípios da neutralidade que são cruciais para intervenções eficazes-- foi destruído pela política norte-americana na Somália desde o 11 de setembro.

Essa é a diferença chave entre a fome do início dos anos 1990, quando os clãs em choque ainda reconheciam a neutralidade da ajuda humanitária, ao invés de enxergá-la como ferramenta da estratégia política ocidental.

Hoje a milícia islâmica extremista e marginal Al Shabaab, que controla muitas partes da Somália, se nega a autorizar o acesso da maioria das agências humanitárias ocidentais; o Programa Mundial de Alimentos teve que retirar-se do país em 2009, deixando de fornecer a ajuda alimentar da qual milhares de pessoas já eram dependentes.

As mortes de funcionários humanitários obrigaram a maioria das agências ocidentais a deixar de operar no país. O resultado é que não há ninguém que possa organizar o esforço logístico maciço que seria necessário para prover os alimentos necessários.

A hostilidade da Al Shabaab à ajuda humanitária ocidental é noticiada em todos os relatos da mídia sobre a fome. Ela se enquadra facilmente nos estereótipos de violência cruel e sem sentido em conflitos africanos obscuros.

REFLEXO DE MEDIDAS CONTRATERRORISMO

Mas o que frequentemente se omite é qualquer explicação da razão pela qual a Al Shabaab é tão hostil a ocidentais --uma exceção honrosa é o jornalista americano Jeremy Scahill, que descobriu locais da CIA em Mogadício.

As reportagens dele mostram como a desconfiança da Al Shabaab tem suas raízes na experiência de uma década de manipulação americana desonesta. A Somália vem sendo a atração secundária da guerra ao terror --e emprego esse termo propositalmente.

Farah Abdi Warsameh/Associated Press
Algumas das crianças em pior estado de desnutrição são tratadas no hospital de Banadir, na capital da Somália
Algumas das crianças em pior estado de desnutrição são tratadas no hospital de Banadir, na capital da Somália

Pense no Camboja e seu bombardeio pelos EUA durante a Guerra do Vietnã.

Desde o início a Somália foi sugada para dentro da guerra ao terror como atriz figurante e destituída de poder em um drama global muito maior. A presença de um número pequeno de pessoas com ligações com a Al Qaeda foi o bastante para suscitar ansiedades americanas de que o país pudesse tornar-se refúgio seguro para membros da Al Qaeda que fugiam do Afeganistão.

Pouco depois do 11 de setembro os EUA congelaram os bens da maior agência de remessas de dinheiro da Somália, a Al Barakat, pilar da economia somali, e muitas pessoas perderam dinheiro.

Outra medida de contraterrorismo dos EUA criminalizou organizações cujo apoio pudesse acabar nas mãos de pessoas com vínculos com terroristas. Isso vem fazendo com que quaisquer negociações com a Al Shabaab sobre assistência às regiões que ela controla sejam muito difíceis para as agências humanitárias.

OPERAÇÕES SIGILOSAS

Enquanto isso, ao mesmo tempo em que tropas americanas --e jornalistas que as acompanhavam-- invadiam o Afeganistão e Iraque e dominavam a atenção do mundo, tiveram início na Somália, já caótica, as operações sigilosas dirigidas a partir da base dos EUA em Djibuti.

Em vários pontos os "senhores de guerra" locais e governos da região exageraram e aproveitaram o medo americano da Al Qaeda para promover suas finalidades próprias.

Na Somália, os EUA vêm assassinando, transferindo prisioneiros ilegalmente, interrogando e bombardeando com aviões não tripulados aqueles que tem visto como sendo seus inimigos, ao mesmo tempo em que vêm financiando aqueles que acreditam serem seus aliados, para que travem guerras em seu nome.

Inimigos foram convertidos em aliados, e vice-versa, em uma história complexa e confusa: o presidente atual, apoiado pelo Ocidente, é um antigo inimigo deste que foi deposto em 2006 por uma invasão etíope apoiada pelos Estados Unidos.

"ERRO DE CÁLCULO"

As raízes da ascensão da Al Shabaab estão naquele erro fatal de cálculo dos EUA (apoiado pela União Europeia) que levou a apoiar com ataques aéreos a ocupação da Somália pela Etiópia e o afastamento da relativamente moderada União de Cortes Islâmicas, apesar de ela ter sido a única força a ter conseguido algum grau de estabilidade no país nos últimos 20 anos.

A inimizade histórica profunda entre Etiópia e Somália forneceu à Al Shabaab uma chance de explorar o ressentimento nacionalista amplamente difundido, para conquistar o poder.

Scahill comenta em tom sombrio que "uma década de política americana desastrosa acabou por fortalecer a própria ameaça que, oficialmente, os EUA pretendiam esmagar".

E, o que é ainda mais deprimente, ele acrescenta que Obama, longe de ter promovido o fim da guerra ao terror, vem intensificando-a, autorizando e "normalizando" operações violentas em qualquer lugar onde os EUA queira realizá-las, com consequências profundamente desestabilizadoras.

Feisal Omar/Reuters
Refugiados aguardam por alimentos na Somália, onde a Organização das Nações Unidas declarou estado de fome
Refugiados aguardam por alimentos na Somália, onde a Organização das Nações Unidas declarou estado de fome

Mas nenhum apelo por ajuda humanitária quer complicar as coisas incluindo a política no meio, e agências como a Oxfam preferem colocar a ênfase sobre a pior estiagem em 60 anos, em lugar de mergulhar em uma controvérsia complicada, criticando os EUA ou o governo britânico; afinal a Oxfam recebe grandes quantias de ajuda do Reino Unido para suas operações no Chifre da África.

Apenas a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem criticado abertamente a política americana, responsabilizando-a pela convicção da Al Shabaab de que a ajuda humanitária é uma ferramenta política do Ocidente e que vem sendo usada como tal no Afeganistão e Iraque.

As atrações secundárias em uma guerra não são, por definição, o alvo central da atenção dos responsáveis políticos ou daqueles na mídia que poderiam cobrar a responsabilidade destes.

Com esse tipo de descaso, a política se torna errática, frequentemente traçada de modo improvisado, com pouca estratégia ou análise cuidadosa discernível.

A política externa americana não apenas vem sendo espetacularmente contraproducente, como também grosseiramente irresponsável. Graças a isso, a atração secundária --como descobriu o Camboja com a ascensão do Khmer Vermelho e suas consequências desastrosas-- pode ser ainda mais brutal que os teatros de guerra principais.

E a tragédia é da Somália.

TRADUÇÃO DE CLARA ALLAIN

 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página