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28/01/2012 - 10h11

Uma ponte de beijos sobre o abismo da memória

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FABIANO CALIXTO
DE SÃO PAULO

No aniversário de 458 anos da cidade, a edição de domingo (22) da sãopaulo convidou cinco escritores e cinco fotógrafos para mostrar como veem as cinco regiões da metrópole.

O escritor Fabiano Calixto e o fotógrafo Felipe Morozini retratam o centro; o poeta Sergio Vaz fala sobre a zona sul, com imagens de Rogério Velloso; e o romancista Michel Laub escreve sobre a zona oeste, com fotos de Tomaz Viola.

Para a zona norte foram chamados a colunista da Folha Vanessa Barbara e o repórter fotográfico Rubens Cavallari. Já a zona leste, captada pelas lentes de Filipe Redondo, ficou a cargo do cantor e compositor Marcelo Jeneci. Confira texto sobre o centro:

*

O centrão de São Paulo reina, apesar das catástrofes. Penso isso enquanto ouço Roberto Bolaño ler seu poema "Los Perros Románticos" ("Mas naquele tempo crescer teria sido um crime / Estou aqui, disse, com os cachorros românticos / e é aqui que vou ficar") em minha radiola portátil e caminho pela Duque de Caxias rumo à São João.

Ao cruzar a Conselheiro Nébias, lembro que perdi um país, mas ganhei um sonho. Não um sonho qualquer, barateado e penteado, mas um sonho espesso, de sabor forte, que alimenta a constante taquicardia de alguém que preferiu esquecer seus santos na seção de achados e perdidos.

Felipe Morozini/Folhapress
Motos estacionadas em rua da região central de São Paulo
Motos estacionadas em rua da região central de São Paulo

Sigo. Os canteiros centrais da avenida são diariamente adubados com cachimbos de crack, restos de comida, guimbas e merda de gente. Ainda assim a cidade resiste. O ônibus segue para o Terminal P. Isabel e vai abarrotado com os esquecidos pela sexta economia do mundo.

Ainda assim, a cidade.

O sinal abre. Escolho um velho disco do Uriah Heep. Juli gosta muito desse disco. Juli gosta desta cidade. Nem mil meandros da mente valem o sorriso de Juli. Desço a São João, entro à esquerda pela Ana Cintra -que é um nome bonito de rua-, até chegar à paróquia Santa Cecília.

Uma vez, numa noite de inverno, um bêbado me disse que Santa Cecília é a padroeira dos músicos e que por isso vivia assobiando e olhando para o céu em busca dos ouvidos da santa. Paro diante do largo. Os fantasmas históricos andam na corda bamba das rotas de leitura. Depois das tempestades de verão que inundam tudo e deixam pelas calçadas uma garapa densa, com a qual os fantasmas históricos se batizam uns aos outros, apenas os cachorros mais fortes, os cães espartanos, perdidos e pelados, caçando comida e com medo, conseguem apreender a luz da lua dormente sobre o chumbo pesado das nuvens -e com seus corações pra explodir de tanto susto, cio e solidão crivam a noite com seus uivos operísticos. Para esses cães, todo gesto de solidariedade tem gosto de carne.

O largo está cheio de uma escuridão espessa e de fantasmas históricos reunidos à orla do último solilóquio dos suicidas. Eles sabem que a dor do centro da cidade tem a silhueta de grandes dinossauros e dura séculos.

Caíram, mas caíram como valentes. Esta é sua grande e furiosa vitória. Ademais, a cidade não sorri pra qualquer um -o centro de São Paulo não é para principiantes. Desço a rampa da estação do metrô, repleta de pétalas roxas, e vejo Juli vindo, iluminando a vida. Como diria um poeta, assim acaba o tempo de silêncio,
logo no início da eternidade.

Fabiano Calixto, 38, é escritor e morador do centro
há dois anos. Autor de "Sangüínea" (editora 34, 2007) e co-editor da revista "Modo de Usar & Co", atualmente ele escreve seu primeiro romance.

 

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