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16/01/2011 - 11h01

Meu Google antes do Google

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BARBARA GANCIA
COLUNISTA DA REVISTA sãopaulo

Lamento informar que, a partir de hoje, qualquer texto de minha autoria terá perdido em cor, sabor e qualidade anímica. Sucede que meu grande amigo Fernando Zarif morreu e com ele foi-se parte do serviço que eu prestava aqui para você.

Não. Por favor, não caia na besteira de perguntar: "Quem?" ou de imaginar que você não tenha nenhuma intimidade com o Fernando. Se estiver atento àquilo que é visual, musical, oral, cerebral, conceitual, pop ou apenas muito divertido e que faça parte da produção cultural do país nos últimos 25 anos, garanto que, de algum jeito, você terá sido tocado pelo Zarif.

Nem que seja na forma de uma capa de disco, da letra de uma música, da escolha da roupa da cantora na apresentação daquele show que fez você pirar, da composição cenográfica da peça de que lembra até hoje, ou até, quem sabe, do que saiu da mente criativa da Adriana Calcanhoto depois que o Zarif deu a ela o cello que pertencera ao seu avô.

Fefo era artista plástico, mas atuava feito um Fred Astaire em todas as áreas que lhe apraziam com uma intimidade de deixar Ginger Rogers megalubrificada.

Para falar a verdade, mesmo sendo das pessoas mais talentosas com quem convivi, no seu próprio ofício, por vezes, ele era errático e
inconstante, acabava sempre brigando com o marchand antes da exposição, implicava com o museu...

Desconfio que, se dependesse dele, o mundo ainda estaria detido na fase do escambo e nunca teríamos visto a cor da Revolução Industrial.

Mas, apesar de ser infernal com mercadores de arte e também com garçons (garfo exigentíssimo, ele era capaz de detectar em uma única bocada todos os ingredientes do coq au vin),

Fernando fazia as vezes de um dândi da época Eduardiana que tivesse sido transportado para dentro de um terno do Yamamoto.

Em novembro, depois da morte do meu pai, fui visitá-lo na UTI. Assim que coloquei o pé para dentro da porta, ele me perguntou, todo preocupado: "Como está sua mãe?", como se quem importasse naquele momento não fosse ele.

Não é que não soubesse da sorte que lhe tocaria. Inaugurei esta coluna falando de outro querido amigo que se foi em 2010. Referindo-se a ela, Fernando me pediu com toda a naturalidade: "Você escreve a minha, por favor?"

Escrevo com grande gosto, meu querido, meu Google antes da existência do Google. Quantas vezes eu não ligava para ele com urgência máxima enquanto escrevia para fazer as perguntas mais cretinas? E toda vez ele respondia sem parar para respirar.

"Como se chamava a agência inimiga do Agente 86?"

"Chaos."

"Como era o nome do poema do Mallarmé sobre o 'hazard'?"

"Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso."

"Como se chamavam os três reis magos?"

"Belchior, Balthazar e Celso."

Meia hora depois ele me ligaria rindo e diria: "Sua anta, apaga Celso e escreve aí Gaspar".

Fernando foi de longe o cara mais culto e inteligente que conheci (ninguém jogava gamão com sua rapidez de raciocínio) e, sobre isso, pelo que li na imprensa no dia seguinte ao seu enterro, concordam comigo o Arnaldo Antunes e o artista plástico Zé Rezende, que fez o último trabalho com meu amigo, uma coleção de desenhos que foram folheados no palco do Municipal do Rio.

No Réveillon do ano passado, não aguentei e joguei no colo do Fernando: "Não sei como vou viver sem você". Sem se perturbar, ele rebateu para o meu lado da quadra: "Dane-se".

Desde o dia 24 de dezembro estou experimentando a danação. E, cruz-credo, como dói.

Fabrício Corsaletti escreve na próxima edição

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