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O manobrista e a médica aposentada
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FABRÍCIO CORSALETTI
COLUNISTA DA REVISTA sãopaulo
Saí do restaurante com o papel do valet e uma nota de R$ 10 na mão pra que o carro da minha mulher viesse logo e nós pudéssemos voltar pra casa e dar cabo de mais alguns episódios de "Sopranos", mas não encontrei o manobrista.
Olhei ao redor e o vi, do outro lado da rua, sentado na mureta do jardim de um desses sobrados da Pompeia, apoiando no ombro uma senhora que erguia e abaixava a cabeça sem parar. No momento em que o reconheci, ele também me reconheceu e gritou: só um segundo, que ela tá passando mal.
Minha mulher e eu atravessamos a rua e perguntamos se queriam ajuda. A senhora mexia os braços de maneira esquisita, desgovernada, e contorcia os lábios desbotados. O manobrista explicou que aquilo acontecia com certa frequência; falou em queda de pressão e garantiu que não precisávamos nos preocupar.
Passados uns cinco minutos, minha mulher insistiu que devíamos levá-la pro hospital. Então a senhora levantou a mão espalmada, como quem pede um tempo, e respondeu que não, que já estava melhor. De fato, seus braços estavam mais relaxados, e a boca, mais vermelha. Ela se pôs de pé, ainda zonza, e o manobrista a acompanhou até dentro de casa.
Depois, enquanto me devolvia o troco, o manobrista contou que ela era médica aposentada e toda noite aparecia ali pra dar aulas pra ele. "Aulas do quê?", eu quis saber. "De português", ele disse. Disse também que ela vivia sozinha e era brigada com os filhos, que não a deixavam ter contato com os netos. Em compensação, a vizinhança era legal com ela.
O padeiro, por exemplo, lhe levava pão fresco todas as manhãs. E a dona do restaurante onde ele, o manobrista, trabalhava ia visitá-la sempre que podia. Na tevê, horas mais tarde, Tony Soprano, furioso, assassinava seu amigo Ralphie, que, de olho na grana do seguro, tinha mandado tacar fogo na cocheira de sua própria égua de corrida, uma linda égua castanha com uma estrela branca na testa, paixão de Tony e que acabou morrendo queimada.
Antes de dormir pensei no manobrista e na médica aposentada, na amizade deles. Pensei na amizade de Ulises Lima e Arturo Belano, personagens do romance "Os Detetives Selvagens", de Roberto Bolaño, que eu li nas férias.
Pensei nos meus amigos, no pai de um amigo que está com câncer, num outro amigo que morreu, nos amigos da minha mulher, nos meus amigos que ficaram amigos da minha mulher ou mesmo amigos dos amigos da minha mulher. Parecia que no mundo só havia amizades.
Depois pensei em coisas deprimentes, coisas tristes e coisas irritantes. E quando dormi sonhei que tinha sido condenado a passar o resto da vida tentando entrar num banco. Mas a porta giratória apitava e eu era obrigado a voltar, procurar objetos de metal nos bolsos e tentar novamente. Mas a porta giratória apitava, mas a porta giratória apitava, mas a porta giratória apitava por toda a eternidade e até me enlouquecer.
Barbara Gancia escreve na próxima edição
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