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Serafina

Escritor viaja através da África Austral

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Tudo começou em Salvador, cidade propícia a bons começos. Foi em setembro de 2004. Eu tinha acabado de chegar ao hotel, vindo do aeroporto, e preenchia uma ficha de inscrição, quando vi entrar uma mulher alta, bonita, com um sotaque bizarro, meio africano, meio inglês. Era Karen Boswall, saxofonista e diretora de cinema, nascida no Reino Unido, mas africanizada por muitos anos de vida -e que vida!- em Moçambique.

Karen dirigira vários documentários sobre música em Moçambique e sobre a situação da mulher na África.

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Nessa mesma tarde desafiou-me a escrever um roteiro para uma ficção que juntasse os seus dois temas favoritos: condição feminina e música. Nos meses seguintes voltei a encontrar-me com Karen, no Rio de Janeiro, e em Durban, na África do Sul, sempre na praia, para discutirmos a trama. Recordo que eram debates muito acesos, quase violentos, pelo menos onde é possível um debate ser violento estando os debatedores sentados numa praia, bebendo água de coco, e olhando a linha azul do mar. Karen queria um roteiro com uma perspectiva não só feminina, mas feminista, e eu tentava contê-la. Estas discussões -sei-o hoje- ajudaram-me imenso.

Finalmente, em setembro de 2005, partimos juntos para uma viagem, por estrada, de Luanda até à Ilha de Moçambique. Conosco veio o fotógrafo português, de origem catalã, Jordi Burch, cujo trabalho sempre admirei. A primeira parte da viagem foi feita num velho Hiace, um táxi coletivo, que em Angola se chama um candongueiro.

Nessa altura já tínhamos um esboço. Seria a história de uma jovem documentarista portuguesa, Laurentina, que descobre ser filha de Faustino Manso, famoso músico angolano. Em Luanda, no funeral de Faustino, Laurentina fica a saber que o pai viveu em diversas cidades da África austral, em Angola, na Namíbia, África do Sul e Moçambique, deixando sete viúvas e 18 filhos. Decide então entrevistar as viúvas, e respectiva descendência, na tentativa de obter um retrato íntimo do grande sedutor. No final da viagem, na Ilha de Moçambique, fica a saber que Faustino Manso era estéril.

Fui-me apercebendo, ao longo da viagem, que tinha material não apenas para um roteiro, mas para um romance. Compreendi, além disso, que Karen era, ela mesma, uma extraordinária personagem romanesca -uma inglesa que se apaixonara pela África, que se atrevera a filmar uma cerimônia de iniciação feminina, interdita a estranhos, e lutava agora contra uma misteriosa e aterradora maldição.

Combinei com Karen que primeiro escreveria o romance e depois, a partir dele, avançaríamos os dois para o roteiro.

Decidi então construir um romance sobre a construção de um romance. Um livro sobre a forma como a ficção se alimenta da realidade e ao mesmo tempo a transforma. Isto em territórios em que o maravilhoso e o absurdo dominam o cotidiano.

Foi assim que nasceu "As Mulheres do meu Pai" (2007).

Lembro as imensas dunas, junto ao mar, no deserto da Namíbia, onde, de quando em quando, encontrávamos carcaças de embarcações ou de veículos que não haviam conseguido escapar à subida da maré. Lembro as longas estradas, imaculadamente limpas, da Namíbia. Lembro as noites agitadas na Cidade do Cabo. Lembro ainda a belíssima Ilha de Moçambique, degradada, afundando-se ao peso de uma história partilhada por mouros, cristãos e hindus.

Em todos esses lugares conhecemos mulheres notáveis. Mulheres que combatem as piores tragédias com uma determinação inesgotável e uma alegria arrebatadora. Cantando. Encantamentos praticavam-se (praticam-se) cantando. É dessas mulheres que melhor me recordo. A gargalhada delas continua me acompanhando e me iluminando. São elas, afinal, que me fazem acreditar no futuro da África.

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