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Serafina

Tímido, Renato Aragão reclama de fofocas e diz que pode chamar de Didi

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Todos jantam torta com salada, enquanto Renato ganha uma vitamina de mamão, banana e maçã com leite desnatado. "Um negócio horroroso", reclama, de cara feia. "Ele não come nada", diz a mulher, Lilian. "Não é meu esporte", devolve ele, que, se pudesse, se alimentaria "com aquelas pílulas dos astronautas". Dá um gole e abandona a vitamina na mesa.

Esse senhor, de 79 anos, é formado em direito, trabalhou em banco, fala baixo, não gosta de festa, se diverte assistindo a programas jornalísticos e não vê graça em comida. Não haveria nada estranho nessa cena se ele não fosse Renato Aragão, criador do Didi, líder dos Trapalhões e herói do humor nacional. 

"Herói de quê? Isso nem passa pela minha cabeça, fico até sem jeito", diz, sentado no sofá de sua casa, num condomínio de luxo na Barra da Tijuca. O humorista, que acaba de estrear no teatro e lança um telefilme em dezembro, faz 80 anos em janeiro, mas não quer comemoração. Talvez faça uma festa para o aniversário do personagem que criou há quase 55 anos e que se confunde com a figura dele.

Como Didi, liderou os Trapalhões e, com Dedé, Mussum e Zacarias, fez gerações de crianças rirem durante os anos em que estiveram no ar, de 1974 a 1994. No cinema, com filmes passados nas minas do rei Salomão, na Serra Pelada e em outros planetas, o grupo ostenta cinco longas entre as dez maiores bilheterias do cinema nacional, com mais de 26 milhões de espectadores.

Nascido em Sobral, no Ceará, o jovem Renato já era desse jeito, contido. Mas também obcecado. Atleta autodidata, nunca fez parte de circo, como muita gente concluía por causa do humor físico de seu personagem. "Sempre fui isolado do mundo, muito sozinho. Eu mesmo construía minhas barras fixas, onde fazia exercícios, salto-mortal, tudo sozinho", diz ele, hoje fiel usuário de uma esteira ergométrica. 

Para virar artista, criou um alter ego espalhafatoso e sem-vergonha. "Todo mundo se impressionava. Aquela coisa que eu não conseguia fazer na vida real, fazia como o personagem", diz.

Assim é Didi, segundo seu criador: "Um cara do povo, que luta, não armazena nada, quer ser feliz. Tem um pouco de Chaplin. Ele não sabe de onde veio. Ele não nasceu. Ele surgiu. É órfão de tudo".

Nome completo ganharia anos depois. Um dia, alguém perguntou "Didi de quê?": "Comecei a falar palavras que eu conhecia do Ceará: Didi Mocó Sonrisélpio Colesterol Novalgino Mufumbo. O povo explodiu de rir. Nem sabia que aquilo era tão engraçado". Mocó  é uma espécie de preá, um rato do mato. Mufumbo, um arbusto do Nordeste. No meio, o vocabulário pseudofarmacêutico é difícil de explicar.

O tímido com alcunha de preá do arbusto se fundiu então a outras três espécies de palhaço: Dedé, Mussum e Zacarias. "Didi era um nordestino sofrido querendo ser feliz. Tinha o galã da periferia, o Dedé. O Mussum era um negão do morro que gostava de birita. E tinha um menininho que não queria crescer, o Zacarias."

Atuaram como Os Trapalhões na TV Tupi entre 1974 e 1976 até se mudarem para a Globo, em 1977. Era época de ditadura, mas os Trapalhões não estavam nem aí. "Política não me interessava. Atravessamos aquilo sem dar bola pra ditadura", diz o líder da trupe chamada de "Monty Python brasileiro" pelo site de cinema Imdb.

"Só queríamos fazer o povo rir, escorregar numa casca de banana, brincar."

Ney Matogrosso dançando sem camisa, Didi Mocó vestido de Maria Bethânia, nada daquilo tinha por trás um objetivo de transgredir. "A gente só tava contando uma história."

"Era totalmente politicamente incorreto", disse Ney Matogrosso, em entrevista à Serafina. Ney participava de quadros em que o comediante o imitava. "Tem gente que dizia que eles debochavam de mim, mas que nada. Eu me divertia. Hoje, tá tudo muito careta."
 
CUMA?

Censura, diz Renato, também não passava por ali. Mas o humorista chega a ficar vermelho de vergonha quando o assunto é o quadro clássico de 1981 "A filha do seu faceta" (aquela do "Papai, eu quero me casar", em que ele canta que "Marlon Brando amanteigou a
Maria 'Schneida"): "Não lembro direito... Era uma coisa ingênua, ninguém podia pinçar aquilo pra criticar".

O homem que chamava de crioulo e era chamado de Ceará ou Paraíba, com graça e naturalidade, lamenta que o politicamente correto engesse o humor atual, mas respeita o direito de grupos e minorias de se defenderem contra a piada alheia. "Os Trapalhões eram intocáveis, blindados. A gente tinha porte de armas pra fazer o que quisesse. E o povo sabia que ninguém tinha intenção de ofender. Hoje, não dá para fazer isso."

Se não havia censura, existia, sim, preconceito contra os Trapalhões. "Talvez pelo humor circense, por eu ser nordestino." Cheio de orgulho, conta que quem ajudou a endireitar o nariz torcido dos "pseudointelectuais" para o grupo foi o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). 

"Ele não dava entrevista, ficava muito recluso, pensando nos poemas dele. Um dia, ligaram e a empregada respondeu: 'Ele não pode atender, está assistindo aos Trapalhões'. Acabou o preconceito. Todo mundo começou a dizer 'são muito bons, esses caras'." Na época, Drummond disse que chegava a "gostar infantilmente dos Trapalhões". E o grupo seguiu junto e no ar até a morte de dois de seus integrantes, Zacarias, em 1990, e Mussum, em 1994.

Ô, PSIT

Outro Renato Aragão surge quando duas polêmicas vêm à tona: as rixas entre os Trapalhões e os boatos de que não gostaria de ser chamado de Didi, e sim de doutor Renato. "Não gosto nem de falar nisso porque me machuca muito. Foi muita fofoca", diz sobre as supostas brigas entre ele e os outros Trapalhões por causa de sua liderança no grupo e por questões financeiras. A relação era de amizade e não de rivalidade, garante.

Há dois anos, surgiu em blogs o boato de que o humorista teria mandado demitir seu motorista por chamá-lo de Didi, e não de "doutor Renato". Variações dessa história são reproduzidas em diferentes sites e fizeram com que o comediante ganhasse certa fama de arrogante.

"Apareceu uma idiota aí, dizendo que eu mandei demitir um cara porque me chamou de Didi. E eu te pergunto: fica impune a pessoa que levantou esse falso? Pra mim, é uma alegria levar esse personagem comigo a vida toda. Não posso desmamar ele, nem quero. Quando me chamam de Didi, digo: 'Tamos aqui!'"

Diz que nunca se negou a tirar fotos, e são enormes as filas que se formam para fazer selfies com ele na saída do musical "Os Saltimbancos Trapalhões", sua estreia no teatro. "Vem uma avalanche de gente. Cada homenzarrão desse tamanho chorando. Isso, pra mim, é vitamina."

No musical, que encerra temporada agora, volta ao cartaz no Rio em janeiro e deve chegar em junho a São Paulo, ele fica quase 2h30 em cena e tem uma pessoa para guiá-lo nas entradas e saídas. "Fico perdidinho." Nunca havia feito teatro por falta de tempo e interesse. Achava que o palco, com horários fixos de quinta a domingo, era uma forma de escravidão.

E, com uma esquisita insegurança para quem tem tantos anos de carreira, temia a plateia vazia. O que não aconteceu. "Está sempre lotado. Vem gente do Sul, de São Paulo, do Ceará. Imagina quanto sai o ingresso? Paga passagem, hospedagem, convite... Fico até sem graça."

NO CÉU TEM PÃO?

"Vamos falar do meu telefilme?", pede o eterno apaixonado por cinema, que tem cerca de 50 filmes no currículo. "Didi e o Segredo dos Anjos" será transmitido pela Globo no dia 21 de dezembro e trará Lima Duarte, Dedé, a cantora Anitta e "muitos efeitos especiais".

Renato lamenta não estar mais nas telas de cinema ao mesmo tempo em que cuida para se manter na TV. Diz que, para o próximo projeto, adoraria fazer um longa que estreie na telona para só então virar minissérie global. "Fico ansioso porque não quero sair da Globo. Fazer filme leva tempo, eu ficaria um período sem aparecer na televisão."

Os temas do novo filme -anjos, fé, magia- estão entre os preferidos dele, que acredita em Deus, nos anjos, nos santos, reza, medita e, às vezes, vê as missas televisionadas do padre Marcelo. Aponta duas cenas ligadas à religião como as mais marcantes da sua vida.

A primeira foi quando subiu na estátua do Cristo Redentor, em 1991, para beijar a mão dele ("Fui que nem suicida. Nunca tive medo."). A outra foi quando fez a pé o percurso de 180 km de São Paulo à cidade de Aparecida em 1999. Botou Nossa Senhora nas costas e saiu andando, para "agradecer em forma de sacrifício" as doações feitas ao projeto beneficente Criança Esperança, de que ele participa desde 1986. "A polícia teve que ir junto pra devolver os meninos que queriam me seguir. Eram pra ser cinco dias, mas foram sete. A Globo falou pra eu chegar na hora do 'Fantástico'."

A imagem de Renato sentado na mão do Cristo foi enquadrada e é um dos destaques da decoração da sua sala. Outro elemento marcante é uma vaca da Cow Parade de uns 2 m de altura, com uniforme verde e amarelo e bola de futebol, bem na porta da casa. "É horrorosa", diz o trapalhão. "Mas as crianças adoram", justifica a mulher, Lilian, que adquiriu a estátua em um leilão.

Ele, Lilian e a filha, Lívian, 15, aparecem juntinhos, entre cores fortes e formas geométricas, num retrato pintado pelo artista Romero Britto. Renato já tinha 55 anos e era pai de quatro filhos do primeiro casamento quando se encantou pela fã e "mulherão" Lilian Taranto, 32 anos mais nova e uns 20 cm mais alta. 

Antes mesmo dos Trapalhões, quando ele ainda estrelava o programa "Os Insociáveis", na Record, apareceu uma família com uma garotinha de uns seis anos que se dizia fã do Didi. "Levantei-a e dei um beijo nela. Dezessete anos depois, aquela menina que eu botei no colo e beijei era a Lilian."

A filha temporã, Lívian, deu uma renovada em sua vida. E também um susto. A emoção do aniversário de 15 anos da garota somada a um colesterol alto e desconhecido culminaram num infarto no dia seguinte à festa, em março. "Parecia que tinha um caminhão de mudança no meu peito. E eu achava que meu coração seria menos vulnerável, por todo o cuidado que tenho." Nos últimos anos, Renato teve AVC, pneumonia e infecção hospitalar. "Agora, tô zero. Vou mudar meu nome para Didi Highlander Mocó."

Na morte, nem deu tempo de pensar. "Não quero saber dela, não. Deixa ela lá." Também não gosta de refletir sobre os 80 anos que vêm aí. "É um número assustador. Vou aceitar que você tá me dando essa idade cronológica, mas eu tenho uns 57. E a ideia de me aposentar é pior que pensar nos 80. Não quero morrer no palco. Quero viver no palco."

A festa de aniversário dos supostos 80 anos volta à roda. E o tímido volta a resmungar. "Sou contido, inibido. Fui assim a vida toda. Gasto mais chinelo que sapato. Não gosto de festas. Pra mim, cinco pessoas já é uma multidão."

Lilian, "que festeja até o dia da pedra", começa então a planejar o aniversário do Didi. Renato imagina a festança do palhaço fanfarrão que vive dentro daquele tímido: "Ia ser cheia de crianças, todo mundo brincando, nada formal". O cardápio para seu alter ego faminto? "Pipoca, cachorro-quente, nhá benta." Nada de vitamina de mamão. E o mais importante: Renato estará presente? "Na minha festa, eu não vou de jeito nenhum. Na do Didi, se ele me convidar, eu vou."

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