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Serafina

De locais ermos do Brasil, produtos brilham em passarelas do mundo

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Quatro produtos naturais ou feitos à mão em lugares ermos do Brasil, quase sem aditivos químicos, saem de seus lugares de origem para despontarem nas passarelas do mundo todo, dando origem a algumas das peças mais cobiçadas de grifes de moda

SEDA | RENDA | ALGODÃO | COURO

SEDA (Mandaguaçu e Maringá - PR)

"Do you know Maringá?". A pergunta, repetida pelo ex-presidente da grife francesa Hermès, Patrick Thomas, a executivos que questionavam a origem da seda usada nos lenços da marca acabou virando cartão de visita de uma região no interior do Paraná. A frase poderia ser traduzida adicionando o apelido do lugar: "você conhece o Vale da Seda?".
É das 1.790 pequenas propriedades espalhadas pelos 29 municípios cortados pelo rio Pirapó que sai uma das melhores sedas do mundo. Na escala de qualidade usada pela moda, o grau de pureza e perfeição do fio é medido por notas que costumam ir de um a cinco.

A região é a única do mundo onde se produz o fio nota seis —base dos "carrés" e das gravatas Hermès—, cujo atrativo é não ter nenhuma falha e pesar quase tanto quanto o vento. Cada 9.000 metros desse fio pesam cerca de 20 g.

China, Índia, Tailândia, Uzbequistão e Brasil controlam a produção do fio da seda. O dragão asiático responde por 85% da produção. O Brasil, por 0,5%.

Produzimos o menor pedaço, porém o mais exclusivo, que vira base dos vestidos de gala e das echarpes finas. Entre prédios abandonados, que até os anos 1990 formaram um competitivo mercado de fiação, as famílias de sericicultores, os criadores do bicho-da-seda, resistem às crises e à competitividade chinesa para criar milhões de larvas que nascem do tamanho de grãos de arroz e que chegam a ter 10 cm cada.

De cor esbranquiçada e toque aveludado, as lagartas são o meio de subsistência do casal Nilson, 53, e Sônia Magalhães, 56. Também são lanche da tarde para os quatro cachorros e algumas galinhas que teimam em invadir os dois galpões onde criam os animais.

A dedicação integral no trato dos bichos garante que, em 21 dias, seis caixas de larvas tenham se transformado em 240 quilos de casulos perfeitamente ovais, ou até dois quilômetros de seda, que são vendidas para Europa e Japão, onde viram tecido.

'BICHO METIDO'

Das fibras de origem animal, a seda é a que demanda mais esmero. "É um bicho metido", diz Nilson. Ele se refere ao fato de a espécie só comer folhas frescas de amoreira. São semanas a fio trocando duas vezes por dia as folhas de amora que o animal devora e sobre as quais também eventualmente dorme.

Depois de mais de uma semana comendo, o bicho adormece por 36 horas. Acorda faminto. Durante seis dias o casal se reveza na tarefa de varar noite alimentando o bicho-da-seda que, já grande, começa a querer se envolver no casulo. "É a única parte pesada do trabalho", afirma Nilson, que no resto do tempo alimenta três porcos enormes, colhe os frutos do sítio e preside a associação local dos sericicultores.

O processo é quase todo artesanal, não fosse o trator que auxilia na limpeza das camas dos animais e na colheita mecânica das folhas. Os insetos moram em telas de madeira com dezenas de aberturas, chamadas de "apartamentos", onde cada lagarta se acomoda sozinha. Na madrugada, o único ruído que se escuta é o zunido dos bichos tecendo, similar ao da chuva.

Nilson e Sônia ganham de R$ 5.000 a R$ 8.000 por mês, vendendo casulos por até R$ 18 o quilo. "Estamos num período de fartura. Em 2001, quando havia muitas empresas de fiação, ganhávamos R$ 1 por quilo. A sericicultura quase acabou por aqui", explica ele.

Seria uma pena: Dona Sônia nunca viu uma blusa de seda. Tampouco sabe o quanto um lenço de grife pode custar.

Ouve que chegam a R$ 3.000 e diz: "Falam que [seda] é bonita, mas, sinceramente, não tem coisa mais confortável que blusa de algodão", brinca a criadora.

O Brasil não consome a própria matéria-prima, em parte pelo preço, algo em torno de R$ 360 o quilo de fio.

"Não há quase nenhuma marca que pague pela seda nacional de alta qualidade", lamenta João Berdú, diretor do Instituto Vale da Seda.

A organização, criada por ele em 2009, promove ações de cooperativismo entre os produtores locais e de divulgação da seda brasileira. Em setembro, por exemplo, marcas paranaenses irão expor blusas estampadas na feira francesa Who's Next.

O mercado brasileiro consome os casulos imperfeitos, sujos e maltratados rejeitados pelas etiquetas mundiais. E isso nem de longe é ruim.

Em um dos dois galpões da tecelagem O Casulo Feliz, próxima do centro de Maringá, o empresário Gustavo Rocha contabilizava os rolos de fios e tecidos encomendados por grifes de alto padrão da moda nacional, como Ronaldo Fraga e Vanessa Montoro, enquanto conversava.

DA OSKLEN À BÍBLIA

As costureiras, por sua vez, empilhavam os figurinos da nova temporada do folhetim bíblico "Os Dez Mandamentos", da TV Record, que garantirá boa parte do salário dos funcionários, todos moradores de comunidades de baixa renda do entorno da fábrica. Além de ser sustentável ambientalmente (o único drama são os bichinhos mortos em água fervente), a seda emprega locais e desenvolve a cadeia produtiva.

A sacada do tecelão foi transformar lixo em luxo ao inverter a lógica de que seda boa é leve e fina. Depois de fiado e torcido, o fio grosso e pesado feito com as sobras vira base para testes de mistura de fibras e tingimentos orgânicos. A palha de seda é uma das vedetes da empresa. Um par de sapatos Osklen com esse material, fornecido por Rocha, não sai por menos de R$ 500.

"Muito empresário não acreditava que o tecido podia assumir esse aspecto rústico e torciam a cara para o produto", conta o tecelão.

Foi a seda que encheu de grifes o salão da fábrica interiorana, onde teares manuais ainda funcionam a todo vapor. Enquanto máquinas elétricas confeccionam velozmente um tecido desenvolvido para a estilista Cris Barros, a reprodução de um casaco feito pela inglesa Vivienne Westwood com a seda que saiu dos casulos locais assiste a tudo.

*

RENDA (Pesqueira - PE)

Maior símbolo da moda artesanal brasileira, a renda já foi tema de exposições e livros. Entra temporada, sai temporada, aparece na São Paulo Fashion Week em passarelas tão distintas quanto a do mineiro Ronaldo Fraga e a da marca paulista Iódice.

Filé, bilro, irlandesa. Entre os diversos tipos de pontos que definem o método de confecção, a renda renascença é a mais famosa e difundida pela moda. Os tecidos com linhas entrelaçadas e unidas por uma fita, o lacê, teriam sido colocados nas mãos das mulheres do interior brasileiro por freiras imigrantes de Portugal há pelo menos 150 anos.

Especula-se que uma religiosa conhecida por Lala teria dado pela primeira vez uma linha e uma agulha nas mãos das mulheres de Poção e Pesqueira, no agreste pernambucano.
A última cidade é considerada a capital da renda brasileira.

Na entrada do município, a 201 km do Recife, uma imagem de Nossa Senhora das Graças divide uma pequena praça com estátuas de mulheres em pleno processo de tecer a matéria-prima. É que em Cimbres, cidadezinha ao lado de Pesqueira, a santa teria aparecido, em 1932, para uma freira. Por isso, a paisagem montanhosa da região é uma trama de romeiros e de rendeiras que, sentadas na porta de casa, trabalham nas horas vagas para complementar a renda familiar.

Mãe e filha, Bethânia Barbosa, 36, e Mykaelly Barbosa, 19, são duas das centenas de rendeiras locais que tecem desde a infância. A avó, Maria José, 56, se recuperava dos sintomas da chikungunya, fazendo a filha acelerar a mão na agulha para ajudar a complementar o salário-mínimo que ganha fazendo merenda numa escola primária estadual.

"Fico até o fim da novela das nove fazendo renda. Dependendo da quantidade de trabalho na escola, consigo fazer duas 'almofadas'", diz Bethânia.

Almofada é como se chama a base cilíndrica onde se enrola a renda. A vizinha, Kátia Lopes, 20, parou de fazer por um tempo para cuidar do filho recém-nascido. A amiga Juciene Santos, 26, dá uma força.

É assim, se revezando entre as obrigações da maternidade e da casa, que essas mulheres abastecem o mercado popular e de luxo. Se bem executado, um rolo de renascença pode valer até R$ 200. A medida faz um quarto da frente de um vestido curto, todo rendado, sem mangas.

MODA DE AEROPORTO

Quase 200 mulheres de Pesqueira e de Poção passam a maior parte do tempo tecendo para uma pessoa só: Fátima Mergulhão, 58, da Fátima Rendas.

O fruto do seu trabalho com a renda renascença foi tema de uma exposição na sede da ONU, em Nova York, e é cartão-postal dos aeroportos do sudeste e do nordeste brasileiro. Na sua grife, ela garante, "nenhuma peça é feita para durar menos de uma vida inteira".

Dentro da fábrica de três andares, que também abriga a casa de sua mãe, ela recebe da mão das rendeiras, todas as quartas-feiras, dezenas de rolos para a confecção das peças. A renascença passa por uma triagem para virar macacões, blusas, vestidos e até jogo de batizado.

Algumas peças prontas têm cerca de dez rolos da renda, e podem custar R$ 10 mil na loja. Boa parte dos clientes da estilista são estrangeiros de passagem pelo país. Algumas poucas noivas pagam pelo serviço sob medida. Uma delas, a empresária conta, chegou a bancar uma viagem a Paris, sua cidade natal, para receber pessoalmente um vestido de cinco dígitos impressos na etiqueta.

Quando o assunto é renda brasileira, há quase uma rixa entre os Estados da Paraíba, Pernambuco e Alagoas para deter o título de qual lugar, hoje, faz a renda mais bonita do mercado.
A alagoense Martha Medeiros, por exemplo, diz que "a prima rica" da renascença seria a renda irlandesa, feita em Divina Pastora, no interior de Sergipe. Ela acaba de incluí-la em suas coleções.

"Os brasileiros estão começando a olhar a renda com o valor merecido. Quando maior o poder aquisitivo da pessoa, mais ela é sensível a esse trabalho", diz a estilista, que cobra em média R$ 5.000 por um vestido de festa com vários tipos de renda. No mercado internacional, a média é de US$ 1.000. "Além da importância cultural, a renda é primordial para levar sustento e desenvolvimento ao sertão do Brasil."

Para Ronaldo Fraga, o problema da renda está trançado com a concepção do brasileiro de trabalhos manuais. "Aqui no país acredita-se que tudo feito à mão por pobre é coisa para pobre." A renda renascença foi uma das poucas matérias-primas que foram trabalhadas, defende ele.

"É uma matéria-prima que expõe a diferença entre a produção industrial importada da China da feita manualmente. A nossa é incomparável." Mas há sinais de melhora. Fátima Mergulhão deve abrir um ateliê de alta-costura em Moema, na zona sul de São Paulo, "nos próximos meses, se essa crise deixar".

A receita de sua família é trabalho. Foi sua mãe quem ensinou a técnica de desenhar os pontos, pregar o lacê, alinhavar e tecer a renda. Dona Marieta, 86, foi a primeira artesã a ser reconhecida como mestre rendeira e, entre a reza noturna do terço e uma olhada no ponto da carne de sol no fogão, supervisiona as costureiras e rendeiras contratadas pela filha para trabalhar na fábrica.

"Esse sempre foi um trabalho feminino. As mulheres são mais caprichosas", diz a matriarca. "O problema é que as jovens, hoje, não têm paciência para aprender. Se continuar assim, isso tudo pode acabar."

*

ALGODÃO (Gurinhém, João Pessoa e Juarez Távora - PB)

João Pimenta está prestes a desfilar o que chama de "coisa de Deus. Uma divindade". A coleção de verão 2017 que apresentará na São Paulo Fashion Week, nesta semana, terá 30 peças com a matéria-prima sagrada. Pimenta usará o algodão colorido, material datado em 4.500 anos, que nasce no solo do agreste e do sertão da Paraíba.

Diferentemente do algodão branco, motor da malharia nacional, ele não leva nenhum tipo de química para crescer. A presença de ácidos ou ceras naturais faz com que a fibra já desponte verde, amarela ou marrom no próprio pé, sem precisar de tingimento. É, por isso, vedete do mercado sustentável internacional.

Em fevereiro de 2016, esteve na última Maison d'Exceptions, feira realizada em Paris com o intuito de abrigar a nata da manufatura mundial.

As plumas coloridas naturalmente atraíram compradores europeus ao estande de Francisca Vieira, 51, dona da marca paraibana Natural Cotton Color.

A empresária fechou contrato com uma das etiquetas francesas mais importantes da atualidade —como é praxe nesse tipo de negociação, a marca não permite a divulgação de seu nome— para a produção de pequenas bolsas.

"Santo de casa não faz milagre", diz Vieira quando perguntamos o porquê de o algodão colorido nacional ser pouco conhecido no país.

"As marcas não querem se comprometer com os agricultores e, além disso, por ser uma matéria-prima mais cara que o algodão branco, o produto final não fica barato na revenda", explica.

No assentamento Maria Margarida Alves, em Juarez Távora, distante 78 km da capital João Pessoa, já apareceram estilistas, marcas e grandes varejistas, como a sueca H&M, em busca do sustento das doze famílias que plantam o algodão, regado entre os meses de abril e maio e colhido até o mês de dezembro.

Não houve acordo, já que a rede está acostumada a comprar a matéria-prima pronta, e lá é preciso encomendar o produto com meses de antecedência, para que seja plantado sob demanda.

Quem já é adepto do sistema é Oskar Metsavaht, estilista da Osklen. Seu projeto ambiental E-Brigade usa algodão orgânico colorido, assim como a seda natural para substituir os tecidos produzidos com química. "Isso é o luxo brasileiro", disse o estilista quando colocou o tecido na passarela da SPFW, em 2012.

Mas, de acordo com Sebastião Barbosa, chefe da Embrapa Algodão de Campina Grande (PB), outros nomões devem chegar. "As grandes indústrias têxteis internacionais querem entrar nessa onda sustentável, muito lucrativa, e estão se mobilizando para investir na expansão desse tipo de algodão aqui na Paraíba junto com a Organic Exchange", afirma Barbosa.

A organização americana é uma das mais ativas no desenvolvimento da cultura orgânica no mundo e tem como parceiros gigantes do porte da varejista C&A e da marca esportiva Nike.

Investimento é crucial para a expansão, já que, devido ao pouco espaço de terra disponível, o algodão é plantado em esquema de alternância com plantações de alimentos. Qualquer quebra de acordo entre as famílias e as marcas pode desestabilizar a renda dos produtores.

Como a do paraibano Luiz Rodrigues da Silva, 66, que faz brotar plumas desde que era um garoto. Antes, ganhava R$ 8 pelo quilo do algodão em ramos.

Agora, com uma máquina dada de presente à cooperativa da qual faz parte, consegue R$ 18 por quilo de algodão. Fecha o mês com até R$ 1.500.

"Quando plantávamos o algodão branco a gente maltratava a saúde. Era muito veneno", explica o agricultor. "Com esse aqui, ganhamos mais e não tem perigo nenhum", diz ele, com a mão em um saco de 120 kg de plumas que ajudou a colher. Aguarda, num galpão com outros cinco sacos, a certificação de matéria-prima orgânica para poder ser fiado.

Luiz foi um dos produtores locais que ajudou a regar as roupas do desfile do estilista João Pimenta. Peças foram enterradas no solo onde cresce o algodão para a cor grudar na trama.

CUIDADO NA MÃO

Desde que aportou no Brasil, em 1983, trazido em tecido americano, um besouro de origem mexicana é o maior inimigo dos agricultores. O bicudo-do-algodoeiro dizimou as plantações de algodão da Paraíba e incentivou a entrada de milhões de litros de pesticidas no país.

Enquanto o algodão branco produzido em larga escala requer o uso do veneno, nas pequenas plantações da versão colorida os próprios agricultores retiram, ainda no início da praga, as plantas perfuradas pelo animal.

Mas esse cuidado só chegou depois do interesse da Associação das Indústrias de Vestuário da Paraíba, presidida por Francisca Vieira, que se reúne anualmente com os colegas empresários para fechar contrato com os produtores locais antes do início do plantio.

"Quando começamos, em 2005, ninguém sabia como era a vida do produtor. Agora, tanto os compradores da Europa quanto dos EUA reconhecem que nosso trabalho é feito dentro de uma lógica de comércio justo", diz Francisca, que a cada safra compra toneladas do algodão colorido produzido ali.

O negócio é sustentável de ponta a ponta, porque injeta dinheiro nas comunidades locais, é economicamente viável e não agride o ambiente.

Além das colorações que nascem da terra, outras cores são alcançadas tingindo a fibra com cascas e extratos de plantas, depois da colheita.

É Marconi Alves Pinheiro, 48, o responsável por pegar os fios tratados numa fábrica do Estado e os transformá-los em tecido. No galpão improvisado na cidade de Gurinhém, localizada entre João Pessoa e Campina Grande, ele cria engenhocas de madeira e ferro para torcer e retorcer fios que, depois, vão para o tear manual.

Muitas delas viram redes luxuosas, que podem ser vendidas por R$ 300 pela Santa Luzia Redes e Decoração, maior exportador de redes do país. A remessa mais recente de Dantas, entretanto, não foi para o exterior. Rumou ao Rio de Janeiro, para a grife Farm, que também colocará na sua coleção peças feitas com esse algodão, naturalmente doce.

*

COURO (Estância Velha - RS)

Blair Waldorf (Leighton Meester), a adolescente milionária do seriado americano "Gossip Girl", revelou ao mundo o couro exótico brasileiro quando afirmou: "meus Birman são sagrados". Mas, décadas antes de ela soltar na TV a frase, a pele de píton usada nos calçados da marca Alexandre Birman já era a carne e a alma do gaúcho Luiz Bocchi, 46.

Dono do curtume Arte da Pele, fincado num bairro simples de Estância Velha, a 45 km de Porto Alegre (RS), Bocchi transformou em peças de luxo a epiderme desse tipo de cobra importada da Indonésia e da Malásia e que, além de Birman, é consumida por grifes como Arezzo, Carmim e Carmen Steffens.

Pintadas à mão ou com spray, as carcaças dos répteis são curtidas por jovens artesãos moradores do entorno de Novo Hamburgo (RS), que ganham até R$ 6 mil por mês para passar dias inteiros com pincel na mão e máscara no rosto. Junto a Franca (SP), a cidade é uma das sedes da indústria calçadista nacional.

Na visita de Serafina, o artesão Cláudio Leinhart, 24, misturava componentes químicos para criar, a olho nu, os tons dos 2,5 metros de uma python curtus. As cobras chegam a ter até sete metros.

Jacarés do pantanal mato-grossense e arraias do Pacífico também são matéria-prima do curtume, que no ano passado abasteceu o mercado com 30.222 metros de serpentes e 2.335 jacarés inteiros coloridos.

"A maioria dos jacarés vai para o mercado internacional. O brasileiro ainda tem muita fixação pela cobra. A moda 'country' é quem mais consome outros tipos de couro", diz Bocchi.
Da semana de moda de Paris, onde Alexandre Birman expõe suas peças de píton, ao centro-oeste brasileiro, nas fazendas de gado e nas vaquejadas, a pele exótica é desejo de gente disposta a pagar em torno de R$ 2.000 por pares de calçado feitos com o material nobre.

Responsável por calçar com jacarés, arraias e cobras os pés do peão de rodeio Filipe Leite (também conhecido como "Cavaleiro das Américas") e do cantor Sorocaba (que faz dupla sertaneja com Fernando), a grife Goyazes celebra. Seu dono, Flávio Ferrari, 49, afirma ter vendido mais de 4.000 pares de peças exóticas no ano passado.

"Até blogueira de moda está usando bota estilo country com couro exótico. Metade das clientes é mulher", diz o empresário, que entrará no mercado americano no segundo semestre deste ano. A Europa também está interessada na selvageria brasileira. Uma das maiores grifes de acessórios de Florença, na Itália, fechou parceria com o curtume para o fornecimento de jacarés, a serem usados na criação de um modelo de tênis. O nome da marca, por contrato, não pode ser divulgado.

A preferência pelos bichos daqui é porque animais brasileiros têm cartilagem menos dura que os da Colômbia [maior exportador de jacarés do mundo] e preço mais em conta. A maleabilidade facilita a montagem dos acessórios e, por isso, o Brasil é reconhecido como o país que tem o melhor couro de jacaré.

No curtume de Luiz Bocchi há um prédio reservado para o tratamento do animal mato-grossense. Penduradas em tábuas de madeira, dispostas em fileiras por corredores fantasmagóricos, as carcaças de jacaré exalam um cheiro forte de produto químico.

Quando chegam ao Rio Grande do Sul, as peles precisam ser esmurradas com força para ficarem ainda mais macias. Líquidos como sulfeto de sódio e ácidos que controlam o PH da pele são colocados em máquinas de lavagem. Só depois desse processo o jacaré é secado e pintado.

Diferentemente do couro bovino, maior ativo do Rio Grande do Sul em se tratando de moda, o de répteis demanda tempo e paciência para ser posto à venda. Até chegar ao mercado, uma cobra ou um jacaré leva cerca de dois anos e meio no processo de nascer, crescer, ser abatido, curtido, tingido, modelado e lançado na prateleira. No caso da cobra, soma-se ainda o tempo de importação.

BICHO CERTIFICADO

O Brasil é um dos países signatários da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção, que atualmente trata o jacaré como animal fora de risco de extinção. Além disso, o Ibama autoriza a criação da espécie porque há grande demanda para o consumo de sua carne.

Os poucos criadouros credenciados no país obedecem uma série de regras como a quantidade de ovos tirados da beira do rio, proporcional ao tamanho da fazenda, e o "abate humanitário", no qual, em tese, o animal não sofre. Uma pele inteira de jacaré é vendida por R$ 270. No mercado internacional, sai por 136 euros, ou R$ 540.

Esse preço aumenta em cerca de 20% caso a pele seja tingida. "Os brasileiros aceitaram muito bem as versões coloridas. Diferentemente da Europa, aqui a ostentação é mais importante", diz Bocchi. Embora lamente o fato, ele sabe aproveitar esse gosto: promete lançar até o fim do ano um couro de cobra que brilha no escuro.

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