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Serafina

Colunista conhece casal de amantes iranianos no túmulo de Marx

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Levei meu filho de nove anos para conhecer o túmulo de Karl Marx no cemitério Highgate. É uma visita que costumo fazer de tempos em tempos. Não é só meu fascínio pelo filósofo revolucionário, mas principalmente uma espécie de curiosidade antropológica, que me leva até lá.

Diariamente o cemitério recebe peregrinos que chegam dos quatro cantos do mundo para homenagear o pai do comunismo. É uma fauna humana muito diversa e interessante: ex-combatentes sandinistas, lacrimejantes sindicalistas bascos e russos aposentados com saudades da União Soviética – mas também muitos jovens curiosos e indignados. No meio deste povo me sinto em casa lembrando da frase do filósofo alemão Hegel (1770-1831) que tanto influenciou o próprio Marx: "A história nos ensina que a história não nos ensina nada".

Enquanto eu tentava explicar para o meu filho o que é a luta de classes, percebi que, distraído por um cachorro, ele não prestava a mínima atenção. Os donos do cachorro se aproximaram sorridentes. Era um casal elegantíssimo, já com seus sessenta anos. Eram iranianos e – na minha fantasia – logo os identifiquei como um tipo muito sofisticado que fugiu do Irã quando o Xá Reza Pahlavi foi deposto, em 1979, e estudou na Sorbonne, na França, ou em Cambridge, na Inglaterra.

ROMANCE PROIBIDO

Acertei na mosca. Ela me disse que era artista plástica. Ele era catedrático de história da arte muçulmana. A conversa ficou muito animada e comecei a notar que os dois não paravam de trocar olhares apaixonados, beijinhos e sorrisos tímidos como dois adolescentes. Falamos sobre bossa nova, Lava-Jato e até o programa nuclear iraniano. Só paramos a conversa quando um vigia nos interrompeu porque queria fechar o cemitério. Nos despedimos entusiasmados e trocamos e-mails.

Na semana seguinte ele convidou minha família para um almoço em Bath, uma cidade no interior onde, explicou, "ela mora com a família".

No dia seguinte me telefonou e perguntou se eu podia tomar um café. Constrangido, disse que na verdade ele e sua companheira eram amantes e as famílias se conheciam há muitas décadas. Contou que há poucos meses se apaixonaram perdidamente e não sabiam ainda como resolver o problema. Pediu mil desculpas e perguntou se nós aceitaríamos fazer parte de uma encenação, fazendo de conta que não o conhecia e também inventando tê-la conhecido sozinha num lugar mais genérico "tipo o Hyde Park, onde ela costuma passear com o cachorro."

Na hora fiquei sem jeito e o tranquilizei. Mais tarde, contando a história para minha mulher, rimos muito – mas ficamos sem saber se devíamos ou não fazer parte da cena. No dia seguinte recebi outra mensagem, dessa vez dela, desmarcando o almoço e pedindo desculpas por nos envolver naquela trama.

Sem esse encontro a história se interrompeu, como num roteiro inacabado do Woody Allen. Ficou o insight na humanidade e o contraponto delicioso de uma paixão devastadora à sombra do túmulo de Marx.

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