Descendentes de Canudos lutam contra megafazenda de soja na BA

Avanço da soja se dá em terras griladas e com expulsão de comunidades tradicionais

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Formosa do Rio Preto (BA)

No final do século 19, um punhado de sobreviventes do cerco militar que dizimou o povoado de Canudos encontrou nas cabeceiras do rio Preto, oeste da Bahia, um lugar para viver em paz. Gerações mais tarde, seus descendentes estão encurralados por trincheiras, cercas, guaritas, seguranças armados, policiais —e, principalmente, pela soja.

A disputa opõe geraiseiros, nome dado às comunidades tradicionais da região, ao Condomínio Cachoeira do Estrondo, apontado pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) como a maior área grilada da Bahia e uma das maiores do Brasil. Somada a outra fazenda também no cerrado baiano, o roubo de terras públicas chegaria a 444.306 hectares, o equivalente a três municípios de São Paulo.

“Quando a gente pensa que não, chegou essa fazenda querendo ser dona de tudo”, diz Adaciano Ferreira Lima, 67, o seu Canário, nascido e criado ali, assim como os pais, avós, bisavós, além das oito filhas. “Mas nunca vendemos, não demos, não emprestemos, é nosso. Eles querem dizer que não é nosso, aí estamos na luta.” 

Lima é um das dezenas de moradores da comunidade Aldeia, localizada em um vale às margens do rio dos Santos, afluente do rio Preto. É o único local com vegetação nativa nos cerca de 260 km percorridos pela reportagem da Folha de Barreiras até ali. No restante da viagem, em terras planas, o cerrado já foi substituído pela agricultura mecanizada de soja, milho e algodão.

Até cerca de cinco anos atrás, havia poucos problemas de convívio entre os geraiseiros e Estrondo, propriedade da família do empresário gaúcho radicado no Rio Janeiro Ronald Guimarães Levinsohn, que chegou à região em 1975. De lá para cá, porém, o condomínio passou a adotar várias medidas restritivas e repressivas contra os moradores, estimados em cerca de cem famílias, quase todas negras, e espalhados por oito comunidades. 

As principais vias de acesso foram bloqueadas por portões e guaritas, com presença permanente de guardas privados armados. Em algumas, o acesso é proibido. Em outras, só é possível mediante a apresentação de documento e durante o dia. São eles que decidem quem pode passar —as principais lideranças, por exemplo, estão vetadas. 

Nem mesmo funcionários públicos conseguem transitar livremente ali. Servidores da Secretaria do Desenvolvimento Rural da Bahia, do governo Rui Costa (PT), relataram ter sido intimidados por seguranças, funcionários da empresa privada Estrela Guia. Um relatório da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial do estado afirma que se trata de “pistolagem e intimidação”.

Junto com as guaritas vieram cercas e trincheiras, que restringem o acesso do rebanho bovino dos geraiseiros ao pasto natural do cerrado. Na comunidade Aldeia, já cercada por cinco guaritas, a trincheira se canalizou a enxurrada, provocando erosão e secando brejos naturais. Em um trecho, o buraco tem cerca de 3 metros de profundidade.

O geraiseiro Lima diz que eles passaram a viver em uma ilha. “[Estão] empatando nós entrar, botar nosso gado, trabalhar, caçar um peixinho pra comer aos filhos. Ao redor da guarita, tem uma tela, e depois da tela, tem uma cerca de 20 fios de arames. Até a mão fechada que a gente mete, não entra no fio de arame. Estamos sufocados, sem poder trabalhar.”

Os moradores colecionam histórias de violência, abuso de poder e intimidação. Em um dos casos mais recentes, em 30 de janeiro, Jossone Lopes Leite, 38, foi baleado na perna esquerda ao exigir, em vão, que os seguranças soltassem o seu gado. Em vídeo gravado pelo próprio geraiseiro, aparecem três seguranças armados, que disparam para o alto antes de atingi-lo. A Polícia Civil registrou o caso como lesão corporal.

Em alguns casos, os incidentes envolvem a Polícia Militar. Em 30 de maio, cinco PMs à paisana estiveram na comunidade Cachoeira, onde mora Leite, a cerca de 2h de carro de Formosa do Rio Preto. Armados com fuzis e escopetas, entraram sem apresentar mandado de busca e apreensão e alegaram que estavam em busca de armas. 

A ação foi presenciada por integrantes da ONG Greenpeace, que divulga nesta terça-feira (11) um relatório sobre a Estrondo, e por uma equipe da TV pública alemã ARD, que filmou a chegada dos policiais, em um veículo não caracterizado.

Em maio do ano passado, conta Leite, PMs de Formosa do Rio Preto arrancaram um torre de internet na comunidade Cachoeira a pedido da Estrondo. A antena não foi devolvida e estaria guardada na fazenda.

“Até hoje, nós estamos se comunicação”, afirmou, em entrevista em Formosa do Rio Preto na semana passada. Perto de Tocantins e a 1.026 km de Salvador,  trata-se da cidade baiana mais distante de sua capital.

Em entrevista em seu escritório, o delegado da Polícia Civil de Formosa, Carlos Roberto de Freitas Filho, afirmou que “os seguranças estão acuados”: “Bateram em alguns seguranças, sequestraram, levaram de um posto pra outro.” Os geraiseiros negam o roubo e a agressão, mas reconhecem a destruição de duas guaritas.

Freitas Filho disse que registrou o caso do geraisero baleado como lesão corporal dolosa e indiciou o segurança. Sobre a torre de celular e a ação de policiais militares na comunidade Cachoeira, disse que os assuntos são da PM.

O delegado diz que, em três anos, acumula cerca de 50 boletins de ocorrência e termos circunstanciados de ocorrência. Para ele, a polícia pouco pode fazer para mediar o conflito, que só será resolvido quando houver uma decisão judicial definitiva sobre a posse das terras.

Dois importantes processos se arrastam na Justiça. Em 2017, o geraiseiros entraram com um ação de manutenção de posse coletiva de parte do território das comunidades. No ano passado, Procuradoria Geral do Estado (PGE), entrou com uma ação discriminatória, requerendo a anulação das matrículas de todos os imóveis do condomínio. 

Procurada pela reportagem via e-mail, a Polícia Militar da Bahia disse que abriu uma investigação sobre a operação dos PMs à paisana, mas ignorou a pergunta sobre por que os policiais retiraram a torre de celular da comunidade Cachoeira.

“Grilagem verde” e desmate ilegal

Para o coordenador da ONG 10senvolvimento, Martin Mayr, 57, a pressão sobre os geraiseiros está ligada a uma prática conhecida como “grilagem verde”. Pela legislação em vigor, 20% das propriedades rurais no cerrado precisam ter mata nativa preservada, conhecida como reserva legal.

“O condomínio Estrondo colocou placas que indicam reservas legais no vale do rio Preto, justamente no território tradicional das comunidades geraiseiros, uma área que abrange mais de 50 mil hectares. Não há dúvidas de que o o condomínio apresenta as terras da posse das comunidades como reserva legal obrigatória”, afirma Mayr, um austríaco oriundo da militância católica que acompanha os geraiseiros desde 2006.

Em seu site oficial, a empresa afirma que preserva 25% dos seus 305 mil hectares. Outros 150 mil hectares são voltados para o plantio. São ao todo 24 empresas que formam o Agronegócio Estrondo, com “uma administração centralizada das atividades”.

Ao menos parte do cerrado foi desmatado ilegalmente. Um relatório do Ibama de 2008 ao qual a Folha teve acesso, afirma que o condomínio desmatou 38,1 mil hectares mediante autorizações fraudulentas obtidas em 2002, área equivalente a 241 parques Ibirapuera.

 “Os danos ao meio ambiente são incalculáveis”, diz o documento, que resultou no afastamento de diversos servidores, incluindo o então gerente executivo de Barreiras, responsável pela região de Formosa. 

Outro lado

Na sexta-feira (7), a Folha telefonou para o escritório do Condomínio Cachoeira do Estrondo, em Luís Eduardo Magalhães (BA). Foi atendido por uma funcionária de nome Patricia. Ela afirmou que o gerente está em férias e só voltará no dia 24, mas orientou a reportagem a enviar um e-mail.

Na segunda-feira, a reportagem voltou a falar com Patricia. Ela confirmou o recebimento do e-mail, mas repetiu que só o gerente, em férias, pode responder pela empresa. Ela disse que não tinha nenhum contato nem de advogados nem da família Levinsohn.

Na sexta-feira, a Folha ligou para o Grupo Colina, uma das empresas da família Levinsohn associadas ao condomínio, mas o homem que atendeu o telefone cortou a ligação e não voltou a atender às chamadas.

A reportagem tentou contato com outras empresas ligadas ao condomínio, a Companhia Melhoramentos Oeste da Bahia e a Delfin Rio, mas os telefones disponíveis não funcionavam.

As viagens por terra do repórter Fabiano Maisonnave à comunidade Aldeia e a Formosa do Rio Preto foram custeadas pela ONG Greenpeace.

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