Governo Bolsonaro beneficia Souza Cruz em exploração de patrimônio genético

Ministérios regularizaram atos e permitiram acesso a micro-organismos em área de segurança; empresa nega benefícios diretos

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Brasília

O governo Jair Bolsonaro (PL) permitiu que a Souza Cruz, fabricante de cigarros, acesse o patrimônio genético de pelo menos cinco espécies de micro-organismos em uma área de fronteira, considerada indispensável à segurança nacional. O material se destina ao processo de fermentação do tabaco.

Em 2019, dois anos antes de permitir essa busca por fungos e outros micro-organismos, parte deles da biodiversidade brasileira, o governo regularizou acessos a patrimônio genético feitos pela Souza Cruz e considerados irregulares, em desacordo com a legislação até então vigente.

Um termo de compromisso suspendeu eventuais sanções administrativas e exigências de multas.

Governo Bolsonaro permitiu que a Souza Cruz, fabricante de cigarros, acesse patrimônio genético de cinco espécies de micro-organismos em área de fronteira - Apu Gomes - 11.ago.2007/Folhapress

A empresa e os dois ministérios envolvidos —GSI (Gabinete de Segurança Institucional) da Presidência e MMA (Ministério do Meio Ambiente)— escondem informações sobre o tipo de material genético que passou a ser acessado; que pesquisas são conduzidas; e a que se destinam.

A alegação para essa decisão é de sigilo comercial e industrial.

"A empresa não havia recebido nenhuma multa ou qualquer outra penalidade, por isso não teve um benefício direto relacionado ao seu perdão em razão da assinatura [do termo de compromisso]", disse a Souza Cruz, em nota.

"Os benefícios decorrentes do termo estão previstos em lei e não são passíveis de negociação." Todas as atividades da empresa observam a lei na íntegra e promovem a conservação e o uso sustentável da biodiversidade, afirmou.

"O termo de compromisso está previsto na lei conhecida como novo marco legal da biodiversidade, que estabeleceu um prazo de regularização. Há termos de empresas de cosméticos, farmacêuticas, agronegócio, químico e muitos outros."

A Souza Cruz passou a se chamar BAT Brasil. Com um capital social de R$ 1,63 bilhão, é uma das maiores fabricantes de cigarros no país. A controladora é a BAT, multinacional com sede em Londres.

A permissão para exploração de material genético relacionado ao processo de fermentação do tabaco contradiz uma ofensiva jurídica da AGU (Advocacia-Geral da União) contra a Souza Cruz e a Philip Morris Brasil, detentoras de 90% do mercado nacional de fabricação e comércio de cigarros, segundo a AGU.

Em maio de 2019, já no primeiro ano do governo Bolsonaro, a AGU ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal no Rio Grande do Sul contra as empresas, pedindo que a União seja ressarcida em razão dos gastos do SUS com fumantes.

As matrizes na Inglaterra e nos Estados Unidos também são rés na ação.

Os custos diretos no sistema de saúde são de R$ 50,2 bilhões anuais; por dia, 443 brasileiros morrem em decorrência do tabagismo; e fumantes têm risco de desenvolvimento de mais de 50 doenças, conforme as informações levadas em conta pela AGU.

Menos de dois meses depois da ação, o MMA decidiu regularizar eventuais infrações da Souza Cruz no acesso a patrimônio genético, com base em uma lei de 2015.

Um termo de compromisso, obtido pela Folha, foi assinado entre ministério e Souza Cruz em 2 de julho de 2019, na gestão de Ricardo Salles.

O acordo regularizou atividades de remessa e bioprospecção feitas em desacordo com as leis anteriores a 2015, o que inclui acessos a patrimônio genético feitos a partir de junho de 2000.

Pelo termo, ficou suspensa a tramitação de eventuais processos administrativos e a aplicação de sanções. A Souza Cruz ficou responsável por atualizar "informações sobre os produtos oriundos do acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado".

As autorizações relacionadas fazem parte do Sisgen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado), vinculado ao MMA.

No termo de compromisso, a Souza Cruz pediu a ocultação dos nomes das espécies indicadas em cinco itens de um anexo, "incluindo aquelas que não são da biodiversidade brasileira, mas que têm relação com a pesquisa (tabaco)".

"A divulgação dessas informações pode resultar na exposição de segredos do negócio, permitindo aos concorrentes a utilização desses dados para fabricar produtos e concorrer de forma desleal, ocasionando danos de difícil reparação", argumentou a Souza Cruz.

Em nota, o MMA afirmou que será "rígido" na punição a empresas que não cumprirem integralmente as obrigações assumidas. "Até o momento, não foi constatada nenhuma irregularidade por parte da Souza Cruz."

O termo de compromisso foi assinado pelo brigadeiro da Aeronáutica Eduardo Camerini, que exercia o cargo de secretário de Biodiversidade do MMA. Ele deixou o ministério em setembro de 2020.

Segundo o MMA, o prazo final para assinatura de termos de compromisso era 6 de novembro de 2018. De 1.600 propostas apresentadas por empresas e instituições de pesquisa, 115 termos foram assinados ainda em 2018 e 756 no governo Bolsonaro.

"O cadastro de acesso da Souza Cruz refere-se a pesquisa científica", disse o MMA. "Não cabe ao ministério interceder pelo usuário."

Em maio de 2021, a empresa cadastrou no Sisgen seis projetos de obtenção de amostras de patrimônio genético de fungos e outros micro-organismos. Os biomas citados são mata atlântica e caatinga, e os estados são Paraná, Rio Grande do Sul, Paraíba e Pernambuco.

Parte dos acessos a esse material genético passa por áreas consideradas indispensáveis à segurança nacional, o que obriga um aval do Conselho de Defesa Nacional.

O general Augusto Heleno, ministro do GSI, é secretário-executivo do órgão. Cabe a ele permitir ou não o acesso a patrimônio genético em áreas sensíveis, como a região de fronteira.

É o mesmo caso das anuências prévias para exploração de minérios na fronteira. Neste caso, o ministro já precisou recuar e anular autorizações dadas, após a Folha revelar que o general liberou exploração de ouro em uma região praticamente intocada da Amazônia, a chamada Cabeça do Cachorro, em São Gabriel da Cachoeira (AM), na fontreira com Colômbia e Venezuela.

No caso do patrimônio genético desejado pela Souza Cruz, o ministro permitiu o acesso a "micro-organismos envolvidos no processo de fermentação tradicional de tabaco", conforme extrato do ato de anuência prévia de 23 de setembro de 2021, publicado no Diário Oficial da União.

Os municípios citados são Marechal Cândido Rondon (PR) e Mercedes (PR), na fronteira com o Paraguai, e Santa Cruz do Sul (RS), onde a Souza Cruz tem um centro de processamento de tabaco.

O banco de dados de anuências prévias, mantido pelo Conselho de Defesa Nacional, não mostra outras autorizações do tipo à Souza Cruz nos últimos dez anos.

"O requerimento da Souza Cruz foi formalizado em atendimento ao disposto na lei nº 13.123, de 2015, que trata de acesso e remessa de amostras de patrimônio genético. O requerente protocolou a atividade perante o MMA, órgão controlador, por intermédio do Sisgen", afirmou o GSI, em nota.

"Por se tratar de atividade de acesso em municípios localizados na faixa de fronteira, o cadastro foi submetido à consulta do Conselho de Defesa Nacional, que deu anuência prévia para o MMA concluir o processo."

O MMA disse que cabe ao conselho aprovar o acesso, sem que exista "qualquer interferência" por parte da pasta.

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