Favelas criam projetos para combater mudanças climáticas e racismo ambiental

Moradores lideram iniciativas para enfrentar problemas de infraestrutura e preservar natureza

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Rio de Janeiro

Cactos, suculentas, babosas e hibiscos dividem espaço na laje e fazem do local um pequeno oásis verde em meio ao cinza que domina as construções vizinhas. Mas as plantas não ocupam apenas a laje. No andar debaixo, elas estão em sapatos, capacetes e até dentro de uma velha televisão de tubo.

Assim é a casa de Luis Cassiano Silva, 52, que criou há nove anos o projeto Teto Verde Favela na comunidade Parque Arará, no Rio de Janeiro.

Homem posa para foto em frente à jardim
Luis Cassiano Silva, 52, no teto verde que criou com várias espécies de plantas na laje de sua casa, na favela Parque Arará, zona norte do Rio - Tércio Teixeira/Folhapress

O ativista ambiental conta que a ideia de criar um teto verde surgiu para combater o calor da região, onde os termômetros costumam passar dos 40°C no verão. "O tijolo prende o calor e a minha casa só esfria às 3h. É insuportável."

A solução deu tão certo que, segundo Luis, consegue diminuir em até 15°C a temperatura da casa e ainda devolve o verde à comunidade, cercada pelo vermelho dos tijolos e pelo cinza do amianto.

"O vermelho é uma cor que inspira explosão, tensão. O cinza é melancolia, tristeza. A favela tem muito disso. É explosão, tensão e tristeza também. Está faltando o verde, uma cor que traz inspiração e tranquilidade."

A falta de áreas verdes não é um problema isolado. De acordo com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, a zona norte — área da qual a favela faz parte— é a região da cidade com o maior déficit de árvores, ao lado da zona oeste.

A pasta afirma que bairros mais pobres têm menos árvores, enquanto os mais riscos têm uma cobertura arbórea maior.

De acordo com o geógrafo Diosmar Filho, a desigualdade na cobertura verde é um dos aspectos do racismo ambiental. O conceito se refere à exposição de pessoas a ambientes insalubres e com pouca infraestrutura tendo como base elementos como etnia e cor da pele.

Segundo o pesquisador, o fenômeno pode ser observado em áreas periféricas. "O racismo ambiental estabelece quem tem acesso a direito ou não no espaço urbano. E aí que a gente chega aos moradores das favelas, que não têm um conjunto de direitos", diz ele, que é doutorando da UFF (Universidade Federal Fluminense).

O especialista diz que as favelas são formadas sobretudo por pessoas negras, grupo que historicamente precisou buscar soluções para enfrentar o racismo. "Essas redes existem porque há uma dimensão chamada quilombo dentro das cidades, e as favelas carregam uma memória histórica das populações negras."

Luis acredita que seu teto verde seja uma forma de combater o racismo ambiental. "A minha missão está aqui. Quero olhar e ver isso aqui tudo verde", diz ele, apontando para os telhados vizinhos.

Em nota, a Prefeitura diz que realizou 212 mil plantios de árvores na cidade entre 2013 e 2019. Além disso, afirma que criou o programa "Árvores do Amanhã" para produzir até 10 mil mudas por ano.

Homem sentado em frente à prateleira cheia de plantas
Luis Cassiano Silva, 52, dentro de sua casa, onde cultiva suas plantas, algumas comestíveis e medicinais - Tércio Teixeira- 15.junho.22/Folhapress

Já no Morro da Babilônia, zona sul do Rio, Carlos Antônio Pereira, 59, lidera há duas décadas ações para reflorestar uma área de 180 hectares. A região abrange pelo menos quatro favelas, além da Babilônia: Chapéu Mangueira, São João, Morro dos Cabritos e Tabajaras.

É uma região de Mata Atlântica que perdeu a vegetação nativa ao longo dos anos e, segundo Pereira, foi tomada pelo capim colonião, uma espécie invasora.

A força-tarefa para reflorestar surgiu em 1995 por meio de uma parceria com a prefeitura. Pereira diz que a administração municipal fornecia as mudas, enquanto os moradores ficavam responsáveis pelo plantio.

Em 2000, ele e outros 22 moradores criaram a cooperativa Coopbabilônia. A ideia era continuar reflorestamento, mas também promover o ecoturismo da região. O projeto conta com apoio da prefeitura e do Shopping Rio Sul.

"A gente trata cada muda como se fosse um filho nosso. Leva no berço, apalpa com a mão e acompanha." A prole se tornou numerosa ao longo do tempo.

Segundo ele, foram plantadas cerca de 400 mil mudas, processo que alterou a paisagem da região. Imagens mostram que, na década de 1980, a vegetação em alguns morros era rasteira e opaca.

Atualmente, as mesmas áreas são tomadas por uma vegetação abundante que, segundo Pereira, trouxe de volta animais nativos que haviam sumido, como papagaios e jacupembas.

Trabalhadores realizam plantação em área desmatadas
Trabalhadores realizam reflorestamento de áreas degradadas da mata atlântica, no Rio de Janeiro, em 2012 - CoopBabilônia

"Isso é um exemplo de que as comunidades produzem coisas boas", diz ele, que é presidente da associação de moradores da Babilônia. "Quando a gente está lá no campo, plantando as mudas, contribuímos também para combater as mudanças climáticas."

Outra favela que está colhendo os benefícios da preservação ambiental é a comunidade Vale Encantado. Encravada no Alto da Boa Vista, zona norte do Rio, a localidade tem cerca de cem moradores e sofria com o esgoto a céu aberto, o que gerava proliferação de mosquitos, contaminação de rios e até casos de diarreia.

Esse cenário mudou este mês, quando um biossistema ecológico para tratar o esgoto da favela começou a funcionar.

Tubulações levam o esgoto das casas até uma cúpula, na qual bactérias promovem a degradação da matéria orgânica. Em uma segunda etapa, o esgoto é depositado em um taque, onde plantas filtram os nutrientes que ainda restam.

A expectativa é que sejam tratados por ano de 5 a 7,5 milhões de litros de esgoto, segundo o engenheiro ambiental sanitarista Leonardo Adler, responsável pelo projeto.

"Uma obra desse porte precisa partir da comunidade, e não vir de fora para dentro. Às vezes, são projetos prontos que não funcionam para a nossa realidade", diz Otávio Barros, presidente da associação de moradores e mestre de obras da construção. O sistema foi posto de pé por sete moradores e já está dando bons frutos.

Os córregos estão mais limpos, o mau cheiro do esgoto sumiu e a presença dos mosquitos diminuiu. "A natureza agradece. Além disso, ao encontrar um morador, a gente vê a alegria dele em ter o esgoto tratado", diz Otávio.

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