Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

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Desigualdades
Descrição de chapéu mudança climática

Não é falta de visão de futuro do povo: é racismo ambiental

Deslizamentos de terras escancararam política que põe pessoas negras e pobres em condições de risco

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Douglas Belchior

Historiador, cofundador da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos.

Gisele Brito

Jornalista, mestra em planejamento urbano, militante da Uneafro Brasil e assessora de desenvolvimento de projetos do Instituto de Referência Negra Peregum.

Izabela Santos

Engenheira ambiental, doutora em ciência ambiental, pesquisadora e ativista por justiça climática. É consultora climática no Instituto de Referência Negra Peregum.

Mariana Belmont

Jornalista, militante da Uneafro Brasil, articuladora da Nuestra América Verde e é coordenadora de projetos ambientais no Instituto de Referência Negra Peregum.

Thaís Santos

Química e doutoranda em Bioenergia, é educadora popular, cofundadora da Comunidade Cultural Quilombaque e coordenadora de núcleo da Uneafro Brasil.

Os alagamentos e deslizamentos de terras em encostas, neste princípio de 2022, escancararam a política urbana que coloca pessoas negras e pobres em condições de subalternidade e risco.

Em janeiro deste ano, houve um aumento da frequência e intensidade das chuvas. Segundo pesquisadores do clima, as tempestades de verão já são esperadas. Por que, então, ocorrem mais enchentes, deslizamentos de terras e transbordamento de rios em áreas periféricas da Grande São Paulo, como nas cidades de Embu das Artes, Francisco Morato e Franco da Rocha, do que em bairros como Perdizes, na capital paulista?

Como o caso de Perdizes ilustra, a ocupação de áreas íngremes não é sinônimo de desastres. Em diversos bairros da capital paulista, os morros foram ocupados pelas elites. Nesses casos, a fragilidade das condições topográficas foi mitigada por investimentos públicos e privados em infraestrutura.

Roupas no varal em favela construída na encosta de morro
Favela Capadócia, na Vila Brasilândia, zona norte, onde há maior concentração de moradias em alto risco em São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

A carência de infraestrutura urbana para a permanência segura de moradias em áreas de morro é um produto do sistema que transforma a necessidade humana básica de morar em mercadoria. Nesse sentido, essas situações de risco resultam não de uma suposta falta de planejamento individual e familiar, mas principalmente da política habitacional destinada à população negra e periférica.

A conexão entre a pauta ambiental e o planejamento urbano está geralmente relacionada a políticas de remoção. Para ilustrar uma situação vivida por milhares de famílias, podemos tomar como exemplo a política de Auxílio Aluguel na cidade de São Paulo. Das famílias que recebiam R$ 400 mensais da Prefeitura de São Paulo para custear despesas com moradia em 2016, 12.609 haviam sido removidas de favelas pelo PAC-Urbanização. Ou seja, a própria política habitacional remove pessoas em vez de garantir infraestrutura para a sua permanência e, em troca, repassa por anos uma quantia cujo valor só paga aluguéis em novas ocupações irregulares, geralmente em áreas de risco, e muitas vezes fora de São Paulo.

Na maior parte dos casos de desabamentos, contudo, as vítimas são culpabilizadas, apontadas como pessoas sem visão de futuro. Mas, afinal, qual a possibilidade de futuro quando o direito à terra continua sendo controlado por um grupelho de proprietários, e a única alternativa da população de baixa renda é se sujeitar aos subprodutos desse mercado? Apesar de a moradia ser um direito, na ausência de políticas públicas que democratizem a terra urbanizada, a terra só pode ser acessada via mercado.

É inquestionável que se trata de falta de visão de futuro. Porém, diferentemente do que disse o presidente da República, a falta de visão é do Estado, dos proprietários de terra e dos empresários do setor imobiliário, cujos investimentos, desiguais e injustos, custam a vida de quem precisa de um lugar para morar. A falta de visão de futuro também se manifesta na ausência de estratégias efetivas para responder a calamidades que recorrem todos os anos.

Há tempos que a população negra e periférica sente na vida cotidiana os resultados das alterações no sistema de regulação do clima. As condições hidrológicas também foram alteradas pelo desmatamento de matas ciliares e de grandes áreas de floresta, pela retificação e assoreamento de rios e pela pavimentação de grandes áreas. Não é mais possível continuar culpando as chuvas, como se fossem algo imprevisível.

Sabemos que as chuvas intensas de verão são esperadas. O que temos presenciado, porém, é uma maior intensidade de eventos extremos. Enquanto o sul da Bahia e o norte de Minas Gerais viviam alagamentos e deslizamentos pelo alto índice de chuvas, a região Sul do país vivia os maiores índices de temperatura da história, com dias de calor de 40°C seguidos de chuvas torrenciais. Pesquisadores já haviam previsto e alertado sobre esse cenário. Por que, então, continua sendo visto como um caso extraordinário?

O risco é recorrentemente naturalizado, como se não fosse um produto das relações sociais e econômicas, que, por sua vez, interferem nos investimentos públicos e privados. Estamos falando de processos históricos, dos quais o racismo é elemento estrutural, incluindo o racismo ambiental. A política urbana coloca pessoas negras e periféricas em condições de subalternidade e de risco socioambiental na medida em que as regiões mais seguras não foram feitas para elas habitarem e os bairros onde habitam não são alvo de políticas de adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Qual será a resposta efetiva das autoridades? São Paulo possui uma Política de Prevenção das Chuvas de Verão, que atua, principalmente, com alertas e acolhimento, mas não com ações preventivas de alto custo. Além disso, conforme apontou levantamento da GloboNews, o governo de São Paulo não utilizou verba aprovada para combater enchentes por 11 anos seguidos, entre 2001 e 2011. Ainda é culpa da chuva?

Mais do que alertas, a população preta e periférica precisa de ações concretas que possam salvar suas vidas. Antes de promover ações de remoção, tirar as pessoas de seus locais de origem e raiz e jogá-las em novas situações perigosas, é necessário que o Estado promova ações efetivas, desde as mais simples até as que exigem altos investimentos. São necessárias ações de prevenção, mitigação e adaptação climática para evitar que os mais vulneráveis morram.

É necessário adotar políticas sociais e econômicas que garantam a resiliência e a possibilidade de reconstrução da vida das pessoas pobres que vivem em condições de risco, vítimas de eventos do clima. E, sob um olhar macro, é necessário repensar o modelo de desenvolvimento que nos leva para a beira do penhasco, para baixo da terra, soterrados pelos impactos de grandes obras, do desmatamento e da falta de planejamento socioambiental.

O uso por autoridades de palavras como "extremo" e "natureza" como justificativa para os desabamentos não passa de uma tentativa de explicar sua injustificável naturalização da morte.

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