Primeiro estudo das enchentes no Paquistão revela ação da mudança climática

Estudos de atribuição estão ajudando pesquisadores a avaliar rapidamente as ligações entre o aquecimento global e desastres climáticos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Raymond Zhong
The New York Times

Começou a chover excepcionalmente forte no Paquistão em meados de junho, e no final de agosto as chuvas torrenciais foram declaradas emergência nacional. A parte sul do rio Indus, que atravessa o país de ponta a ponta, converteu-se em um lago imenso. Vilarejos viraram ilhas cercadas por água pútrida que se estende até o horizonte. Mais de 1.500 pessoas já morreram. A água pode levar meses para abaixar.

O dilúvio foi agravado pelo aquecimento global causado por emissões de gases estufa, disseram cientistas na quinta-feira (15) com base num campo de pesquisas rapidamente crescente que avalia a influência da mudança climática sobre eventos climáticos extremos específicos pouco após sua ocorrência, enquanto a sociedade ainda está lidando com suas consequências arrasadoras.

Grupo de pessoas na borda de um lago, carregando baldes para coletar água.
Coleta de água em Johi, uma cidade em Sindh, Paquistão, no último dia 13 - Kiana Hayeri/The New York Times

Com o aperfeiçoamento de suas técnicas, os climatologistas podem avaliar com especificidade e confiança crescente como mudanças induzidas pelo homem na química da Terra afetam o clima inclemente, somando mais peso e urgência às questões de como os países devem se adaptar.

As enchentes no Paquistão são os mais mortíferos numa recente sequência de extremos climáticos espantosos ocorridos no hemisfério norte: secas implacáveis no Chifre da África, México e China; inundações inesperadas na África ocidental e central, Irã e Estados Unidos, e ondas de calor escaldante na Índia, Japão, Califórnia, Reino Unido e Europa.

Cientistas vêm alertando há décadas sobre a frequência e intensidade crescente de alguns tipos de fenômenos climáticos extremos, à medida que mais gases retentores de calor são emitidos na atmosfera. Com o planeta se aquecendo, mais água evapora dos oceanos. O ar mais quente também contém mais umidade. Assim, tempestades como as que acompanham as monções do sul da Ásia podem exercer impacto maior.

Mas as chuvas das monções no Paquistão variam tremendamente de ano a ano já há muito tempo. Por esse motivo, dizem os autores do novo estudo, é difícil definir até que ponto a mudança climática agravou a estação das monções neste ano. Mesmo assim, a maioria dos modelos computadorizados dos cientistas indicaram que o aquecimento de origem humana intensificou as chuvas de alguma maneira, o que os convenceu de que esse foi um fator que contribuiu para as enchentes.

O Paquistão poderia ter sofrido chuvas desastrosamente intensas neste ano mesmo sem o aquecimento global, disse a autora principal do estudo, Friederike Otto, climatologista no Imperial College London. "Mas a situação foi agravada pela mudança climática", segundo ela. "E pequenas alterações têm efeitos grandes, especialmente nessas regiões altamente vulneráveis."

O estudo foi produzido por 26 cientistas filiados à World Weather Attribution, uma iniciativa de pesquisas especializada em estudos rápidos de eventos extremos. Cientistas da organização concluíram que o calor que escaldou a Índia e o Paquistão neste ano teve 30 vezes mais chances de ocorrer devido às emissões de gases estufa. O calor extremo de julho no Reino Unido teve pelo menos dez vezes mais chances de ocorrer, segundo descobriu o grupo, cujo próximo tema de pesquisa será a estiagem deste verão na Europa.

Os estudos de atribuição procuram vincular dois fenômenos distintos, mas relacionados: a meteorologia (condições do tempo) e o clima.

Um homem descalço, puxa uma vaca com uma corda para que ela saia de um barco. Ao redor, outras pessoas o observam.
Um homem luta para tirar uma vaca de um barco em Johi, uma cidade em Sindh, Paquistão, no último dia 13, onde um porto improvisado se formou para transportar combustível, alimentos, motos e gado entre aldeias - Kiana Hayeri/The New York Times

Clima é o que acontece com as condições do tempo no decorrer de longos períodos e em escala planetária. Os dados meteorológicos só começaram a ser registrados diretamente há um século, mais ou menos, em muitos lugares. Por essa razão, cientistas usam modelos computadorizados e conceitos da física e química para formular sua visão da evolução climática. Mas as condições do tempo sempre foram variáveis, mesmo sem a influência da atividade humana. Os estudos de atribuição procuram distinguir essa variabilidade natural das alterações maiores que estão sendo provocadas pelas emissões de combustíveis fósseis.

As pesquisas de atribuição "realmente nos ajudam a entender a posição da meteorologia dentro da mudança climática de longo prazo", disse Daithi A. Stone, climatologista do Instituto Nacional neozelandês de Pesquisas Hídricas e Atmosféricas.

Para realizar uma atribuição, cientistas utilizam modelos matemáticos para analisar o mundo como ele é e como poderia ser se os humanos não tivessem passado décadas lançando na atmosfera gases aquecedores da atmosfera. Com simulações computadorizadas, eles podem reencenar a história recente dezenas ou até centenas de vezes nos dois mundos para ver com que frequência o evento e outros eventos semelhantes ocorrem em cada um dos modelos. As diferenças indicam até que ponto o aquecimento global provavelmente foi responsável pelo que ocorreu.

Os pesquisadores muitas vezes fazem essa comparação usando dezenas de modelos climáticos, para assegurar que suas conclusões sejam corretas. E verificam as simulações, comparando-as com os registros de eventos reais que ocorreram no passado.

Para estudar as enchentes deste ano no Paquistão, os autores do novo estudo analisaram dois conjuntos de medidas: a precipitação pluviométrica máxima em 60 dias entre junho e setembro em toda a bacia do rio Indus e a precipitação pluviométrica máxima ao longo de cinco dias nas penínsulas do Sindh e Baluquistão, no sul do Paquistão, fortemente atingidas pelas inundações.

Eles descobriram que vários de seus modelos não reproduziam realisticamente os padrões nos dados sobre chuvas reais no Paquistão. E os modelos que o faziam davam respostas divergentes sobre quão mais intensas e prováveis haviam se tornado as chuvas sob os níveis atuais de aquecimento global.

Mas os modelos deram respostas mais claras quando se considerou um nível mais alto de aquecimento. Diante disso, os cientistas sentiram confiança em afirmar que a mudança climática provavelmente agravou as enchentes deste ano, se bem que eles não tenham estimado o grau de agravamento.

Segundo Otto, melhorias recentes nos modelos climáticos ajudaram os autores a estreitar suas estimativas. "As barras de incerteza são menores do que teriam sido cinco anos atrás", ela disse, falando das linhas nos gráficos estatísticos que mostram faixas de valores possíveis. "Mas as monções ainda são algo que os modelos têm muita dificuldade em calcular."

Uma mulher segura um bebê no colo. Ela usa um lenço para cobrir parte do corpo. A criança está com um roupa verde e olha para cima com uma expressão assustada.
Mãe segura seu bebê febril, suspeito de ter malária, em Wado Khosa, Paquistão, no último dia 13. Chuvas fortes e inundações podem causar o aumento da doença - Kiana Hayeri/The New York Times

Segundo outro autor do estudo, Fahad Saeed, climatologista em Islamabad do grupo climático Climate Analytics, a topografia muito diversificada do Paquistão, abrangendo desde o litoral sul até os picos altos do Himalaia no norte, faz com que o clima do país seja moldado por muitos fatores físicos.

"A representação de todos esses processos pode ficar complicada quando se aplica um modelo climático", ele comentou.

Registros meteorológicos mostram que as monções no sul da Ásia têm apresentado variações mais fortes entre anos mais secos e mais chuvosos. É uma notícia ruim para os agricultores que, cada vez mais, se veem obrigados a lidar ou com campos esturricados ou campos inundados.

O físico Anders Levermann, do Instituto Potsdam de Pesquisas de Impacto Climático, na Alemanha, propôs uma explicação. As monções asiáticas começam na primavera quando a terra se aquece e atrai ar úmido do oceano Índico. Quando esse ar bate nas montanhas e esfria, sua carga de vapor se condensa, formando chuva, e nesse processo libera calor. O calor atrai ainda mais ar do mar para a terra, e isso conserva leva a monção a continuar.

Num planeta mais quente, há mais umidade nesse sistema, o que significa que as chuvas aumentam. Mas se alguma coisa bloqueia esse fluxo de ar mais quente para a terra, como uma perturbação atmosférica ou poluição atmosférica forte, seus efeitos mais fracos sobre a monção também podem ser ampliados, disse Levermann.

"Isso é o ruim da mudança climática", ele disse. "Não é apenas um aumento de alguma coisa ou uma diminuição de outra. É o aumento da variabilidade."

Traduzido originalmente do inglês por Clara Allain.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.