Descrição de chapéu Planeta em Transe

ICMBio aponta ilegalidade e abuso em contratos de crédito de carbono em reservas marinhas

OUTRO LADO: Empresa diz que termos são válidos e que tratativas respeitaram comunidades extrativistas

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Manaus

O ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) apontou ilegalidades e cláusulas "nitidamente" abusivas em contratos para geração de crédito de carbono que previram 50% dos repasses à empresa responsável pelos projetos.

Os acordos foram assinados entre a empresa Carbonext e associações de trabalhadores que atuam em 12 resex (reservas extrativistas) no litoral amazônico do Pará. A gestão das reservas é uma responsabilidade do ICMBio.

Essas reservas estão em áreas de deságue de rios no oceano Atlântico, nas imediações de cidades paraenses como Soure –na baía da Ilha do Marajó–, Viseu, Santarém Novo e Curuçá. São áreas de mangue com grande biodiversidade.

Mais de 21 mil famílias estão assentadas nessas reservas, segundo dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

Mangue com uma praia ao fundo
Reserva Extrativista Marinha de Soure, na Ilha do Marajó (PA) - @Icmbio no Facebook

A geração de créditos de carbono ocorreria a partir de atividades que evitem desmatamento e degradação da floresta. O instrumento que permite isso é o REDD+, desenvolvido no âmbito da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima.

Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento que foi evitado. Créditos são gerados e vendidos a empresas que precisam compensar suas próprias emissões de gases-estufa.

Ainda não existe uma regulação desse mercado no país. O governo Lula (PT) e o Congresso têm costurado o texto de um projeto de lei para a área.

Documentos obtidos pela Folha mostram que os contratos no litoral do Pará previram destinação à Carbonext de 50% dos recebimentos por eventuais créditos, sendo 30% para própria empresa, como remuneração pelo desenvolvimento dos projetos, e 20% para iniciativas de monitoramento e gestão das áreas. Os outros 50% seriam destinados às associações.

Os contratos estabeleciam parceria por 20 anos, com exclusividade, compartilhamento de receita decorrente da manutenção da floresta em pé —inclusive repasses do governo federal ou outro órgão público—, direito de a empresa ficar com os 30% de remuneração mesmo se as associações firmassem parcerias com outro empreendimento do ramo e restrições de contestações no Judiciário.

Em nota, a Carbonext afirma que todas as tratativas com associações de reservas extrativistas foram conduzidas com "total transparência e respeito às comunidades" e que os procedimentos legais foram seguidos. "Os termos são válidos e eficazes. A Carbonext informou o MPF [Ministério Público Federal] sobre o andamento dos projetos e convidou o órgão a participar das reuniões."

A Procuradoria Federal, junto ao ICMBio, analisou os termos de dois contratos assinados, num parecer de 20 de julho de 2022, cujo conteúdo foi validado em nova nota técnica de 19 de setembro do mesmo ano.

Conforme a área jurídica que atua no instituto, "há cláusulas nitidamente abusivas". Entre as cláusulas citadas está uma que "afasta a aplicação da lei". Outra diz respeito à previsão de o compartilhamento de receitas incluir "qualquer forma de monetização pela simples preservação da floresta em pé".

O parecer apontou ainda como ilegalidade a vedação de que controvérsias fossem levadas ao Judiciário, o que só poderia ocorrer por meio de arbitragem.

A Procuradoria considerou que a parte que assinou o contrato foi ilegítima, por não ter havido envolvimento do ICMBio. Por isso, segundo o parecer, o órgão federal poderia denunciar a contratação e até mesmo aplicar sanções às associações.

Nesse ponto específico, um novo parecer, de setembro de 2022, aplicou um segundo entendimento: é possível haver contratos assinados diretamente entre empresas e associações para exploração de créditos de carbono nas reservas extrativistas, desde que exista permissão expressa no contrato de concessão de uso da área e no plano de manejo da unidade de conservação.

Para a Carbonext, "as reservas extrativistas são unidades de conservação que admitem o regime possessório privado". "Os créditos de carbono gerados pelo projeto seriam de titularidade da associação, portanto, privados", defende a empresa.

No parecer de julho de 2022, houve recomendação para que os contratos fossem anulados, o que ocorreu em maio de 2023.

Segundo a Carbonext, o recebimento de 30% dos créditos é padrão em seus projetos. Os outros 20% seriam "necessariamente" aplicados em projetos sociais nas reservas. A exclusividade também é uma prática de mercado, conforme a empresa.

Em relação a duas cláusulas contestadas pelo ICMBio, a Carbonext afirmou que o compartilhamento de receita garantiria a continuidade do projeto. Quanto à definição sobre arbitragem, a empresa disse que ela foi "amplamente debatida com a comunidade".

Em fevereiro de 2022, houve uma reunião do conselho deliberativo da Reserva Extrativista Chocoaré-Mato Grosso, que fica em Santarém Novo (PA). A associação dos trabalhadores da reserva foi uma das que assinaram contratos com a Carbonext.

Segundo a ata da reunião, gestores do ICMBio afirmaram que havia necessidade de licitação para exploração de serviços ambientais nas reservas, o que não ocorreu no caso dos créditos de carbono.

Um dos donos da Carbonext, Luciano Correa da Fonseca, disse na reunião que "o contrato está bem amarrado" e que "o Estado é excessivamente burocrático e lento nas suas tomadas de decisões".

Na ocasião, Fonseca disse que a empresa é "qualificada, a mais antiga no mercado, representante da ONU no país e presidente da associação do carbono".

A frase sobre a ONU, segundo nota da empresa, faz referência ao fato de uma das sócias, Janaina Dallan, integrar grupo de consultores da UNFCCC, a Convenção da ONU sobre Mudança do Clima. "No órgão, a executiva é responsável por pareceres e análises de projetos que pedem registro e liberação de créditos à UNFCC desde 2013."

Em junho, reportagem da Folha mostrou que a Carbonext desfez contratos em terras indígenas, entre elas a Terra Indígena Kayapó, no sul do Pará. O território tradicional é o que tem mais garimpos ilegais no país.

A parceria com os kayapós mebengôkres previa "milhões de reais". Parecer técnico da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) considerou inadequadas as previsões feitas no contrato.

O MPF e o MP do Pará, em nota técnica em julho, afirmaram que o mercado de crédito de carbono altera o modo de vida de comunidades tradicionais, com propostas "ilusórias", e que os contratos precisam de "necessária intervenção estatal".

Há casos também de atuação de empresa do mercado de criptomoedas em terra indígena no Pará, com proposta de geração de créditos de carbono e conversão em criptoativos. A Funai recomendou que contrato entre a firma Green Forever e indígenas suruís akewaras não fosse levado adiante.

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