A reciclagem de plástico pode realmente funcionar algum dia?

Califórnia muda regras para rotulagem e força uso de materiais mais sustentáveis em embalagens

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Susan Shain
The New York Times

Jan Dell não coleciona arte nem bonecos, mas sim o que chama de "recipientes de plástico de má qualidade". É uma especialista e colecionadora compulsiva: suas amostras incluem tampas de latas de aveia, copos de restaurantes de fast food, produtos de limpeza envoltos em rótulos termoencolhíveis e muitos, mas muitos envelopes da Amazon.

Há em cada um desses objetos o conhecido símbolo de reciclagem representado por um triângulo de setas, mas Dell acredita que nenhum deles será reciclado um dia.

Desde 2018, quando desistiu da carreira de engenheira química, Dell dirige em sua casa, nas montanhas do condado de Orange, na Califórnia, uma organização sem fins lucrativos chamada Last Beach Cleanup.

Seu trabalho obsessivo para acabar com o que chama de "o mito da reciclagem" resultou em um acordo legal que obriga a Coca-Cola, a Clorox e outras empresas a modificar alguns de seus rótulos de reciclagem.

Diversas embalagens lado a lado
Coleção de embalagens de plástico em Laguna Nigel, na Califórnia - Molly Matalon/The New York Times

Dell também liderou um comitê consultivo que impulsionou uma lei histórica para uma rotulagem verdadeira na Califórnia, com vigência a partir de setembro de 2025, que vai proibir que as empresas coloquem os símbolos de reciclagem em produtos que não são amplamente reciclados no estado.

Potes de iogurte podem estar entre eles, assim como embalagens de alimentos para bebês, recipientes de comida para viagem e tampas de copos de café.

Em muitos lugares do país, apenas garrafas e embalagens de plástico rotuladas com os números 1 ou 2 — como as usadas para refrigerantes, leite e detergente— são recicladas de maneira eficaz. Grande parte das demais acaba em aterros sanitários ou poluindo as águas e praias em todo o mundo. A ONU estima que os seres humanos produzem 400 milhões de toneladas de resíduos plásticos por ano.

Embora a rotulagem precisa possa parecer uma medida insignificante diante desse cenário, Dell argumenta que é uma das maneiras mais eficazes de reduzir o desperdício.

Mais de um terço do plástico do mundo é usado em embalagens, e muitos dos principais fabricantes de bens de consumo prometeram que suas embalagens serão 100% recicláveis, reutilizáveis ou biodegradáveis até 2025.

Dell espera que as empresas que não cumprem esses requisitos optem por materiais mais sustentáveis: "Quando elas admitirem que o que estão vendendo é lixo plástico, vão se sentir motivadas a fazer mudanças."

Mulher passeia com 2 cachorros
Jan Dell, fundadora da Last Beach Cleanup, em Laguna Nigel, na Califórnia - Molly Matalon/The New York Times

Muitos fabricantes que não querem abrir mão desse material barato, durável e versátil têm uma visão diferente. Argumentam que o foco não deve estar no que não é reciclado atualmente, mas sim no que poderia ser reciclado se houvesse investimento suficiente na educação dos consumidores e na expansão da infraestrutura.

A lei de rotulagem da Califórnia também traz à tona uma pergunta ainda mais importante: em se tratando de embalagens sustentáveis, o que seria um verdadeiro progresso? Investir na produção de mais plástico sustentável? Ou em alternativas a ele?

O grande debate sobre rotulagem

O tão conhecido símbolo de reciclagem, representado por um triângulo de setas, proliferou no fim dos anos 1980 e no início dos 1990, quando a indústria de plásticos negociou com sucesso com quase 40 estados dos Estados Unidos para torná-lo obrigatório na maioria dos produtos plásticos.

Segundo uma investigação da NPR e da Frontline, essa indústria sabia que a maior parte do plástico não seria reciclada. Ela alega que os números se destinavam apenas a ajudar os recicladores a classificar os diferentes tipos de plástico, mas as setas ao redor deles se tornaram de fato para os consumidores um indicador, embora enganoso, de que o produto poderia ser reciclado.

Nos últimos anos, medidas financiadas por essa indústria desenvolveram novos tipos de rotulagem.

O How2Recycle, programa de rotulagem de reciclagem financiado por meio de taxas de associação de grandes fabricantes, como Walmart, Procter & Gamble, Target e Amazon, cria rótulos usados por mais de um terço da indústria de bens de consumo embalados. Esses rótulos oferecem orientação sobre a reciclabilidade da embalagem —e, quando ela é, dão instruções de como prepará-la, como "enxágue e recoloque a tampa".

O How2Recycle afirma que está ajudando os consumidores a reciclar de forma mais eficiente. Mas Dell e outras pessoas apontam que algumas das etiquetas da organização induzem as pessoas a acreditar que certos plásticos podem ser reciclados, quando isso não é verdade.

O material que mais representa esse argumento é o polipropileno, o plástico marcado com o número 5 que é frequentemente usado em embalagens de iogurte e margarina.

Há três anos, o How2Recycle reduziu a categoria da sua etiqueta de polipropileno, informando os consumidores de que não era reciclado em todas as comunidades. Depois, no meio do ano passado, mudou novamente a etiqueta para "muito reciclável".

A decisão de reverter a designação veio depois que o The Recycling Partnership, outro grupo financiado pela indústria, forneceu US$ 6,7 milhões aos centros de reciclagem para expandir a aceitação e a separação do polipropileno. O grupo estima que agora mais da metade dos centros de reciclagem dos Estados Unidos recebem e separam o material.

Paul Nowak, diretor-executivo da matriz da How2Recycle, considera isso um sucesso: "É uma demonstração de que o programa está funcionando, porque, depois que o rebaixamos, a indústria se mobilizou e começou a conceder subsídios e a reconstruir seu sistema".

No entanto, Dell argumenta que, embora mais centros estejam recebendo polipropileno, isso não significa que eles o estejam vendendo para ser processado e reutilizado, sendo mais provável que esteja indo para aterros sanitários ou para outros países.

A Agência de Proteção Ambiental (EPA, em inglês) estima que, em 2018, apenas 2,7% das embalagens de polipropileno foram recicladas. O The Recycling Partnership afirma que seu investimento, que agora chega a US$ 10,3 milhões, poderia aumentar essa quantidade em 19 mil toneladas por ano, mas isso ainda representa aproximadamente 1% do polipropileno produzido para recipientes e embalagens nos Estados Unidos.

Parte do debate gira em torno do que isso significa para a reciclagem. Em um comunicado recente, a EPA recomendou que os materiais só sejam comercializados como recicláveis se tiverem um "mercado final sólido", o que significa ser vendidos a um preço maior do que o custo de descartá-los.

Segundo a agência, o símbolo do triângulo de setas "não representa com precisão a reciclabilidade, já que muitos plásticos (principalmente do 3 ao 7) não têm mercado final e sua reciclagem não é financeiramente viável". A agência observou, contudo, que um número crescente de centros de reciclagem está aceitando polipropileno.

Judith Enck, ex-funcionária da EPA e fundadora da Beyond Plastics, organização não governamental voltada para a conscientização e o combate dos problemas ambientais relacionados ao plástico, argumenta que, embora os centros de reciclagem possam receber todos os tipos de plástico, classificá-los, limpá-los e produzir novos materiais a partir deles é outra questão.

Ao contrário do que afirma a indústria do plástico, Enck ressalta que não há quantidade de dinheiro que possa aumentar significativamente a reciclagem de plástico além de garrafas e embalagens rotuladas com os números 1 e 2: "A reciclagem do plástico só existe na mente das agências de relações públicas que o promovem".

Embalagem de plástico de Coca Diet
Embalagem de Coca-Cola Diet que faz parte da coleção de Jan Dell - Molly Matalon/The New York Times

'Podemos alcançar esse progresso'

De acordo com a nova lei de rotulagem verdadeira da Califórnia, o polipropileno —e todos os outros plásticos— só serão considerados recicláveis se atenderem a duas condições: se 60% dos californianos tiverem acesso a um reciclador que receba e classifique o material, e se 60% dos recicladores do estado tiverem acesso a uma instalação de processamento.

O Departamento de Reciclagem e Recuperação de Recursos da Califórnia, ou CalRecycle, atualmente está estudando quais materiais os recicladores estão coletando —e para onde vão.

Quando a agência publicar suas descobertas no próximo ano, as empresas terão 18 meses para mudar seus rótulos. Os fabricantes de embalagens e produtos descartáveis para alimentos, como copos e utensílios, também enfrentarão pressões da nova lei da Califórnia de responsabilidade estendida do produtor, que os obriga a tornar seus produtos recicláveis ou biodegradáveis até 2032.

Como a Califórnia representa grande parte da economia dos Estados Unidos, é provável que o impacto combinado dessas leis seja sentido no país inteiro, disse Heidi Sanborn, ex-presidente da comissão de reciclagem que as promoveu. "

As empresas já estão contatando os fabricantes de embalagens para dizer: 'Acho que o número 6 não vai funcionar mais.' E elas não vão fazer essas mudanças apenas para a Califórnia."

É claro que a indústria do plástico pode contestar as descobertas do CalRecycle, mas Sanborn afirmou que, se a lei da Califórnia funcionar como Dell espera, os fabricantes serão forçados a mudar para materiais reutilizáveis ou verdadeiramente recicláveis.

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