Chuva catastrófica na Líbia foi até 50 vezes mais provável devido a mudanças climáticas, dizem cientistas

Tempestade e rompimento de barragens levaram a mais de 10 mil mortes e outros milhares de desaparecidos

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São Paulo

A fortíssima chuva, conectada com a passagem da tempestade tropical Daniel, que atingiu recentemente a Líbia e deixou, até o momento, mais de 10 mil mortos e outros mais de 10 mil desaparecidos, teve contribuição dos humanos, a partir da crise climática.

A precipitação extrema em 24 horas no país do norte do continente africano se tornou até 50 vezes mais provável de acontecer e até 50% mais intensa, em comparação a uma realidade 1,2°C mais fria —basicamente, um mundo sem o atual cenário de crise climática.

Comparado ao período pré-industrial (a média de 1850 a 1900), a temperatura média global já subiu mais de 1,1°C, com grande participação nesse processo das emissões de gases-estufa por humanos.

Os dados são provenientes de um estudo da WWA (World Weather Attribution), grupo de cientistas especializados na chamada ciência da atribuição, que estuda eventos climáticos.

Duas imagens da mesma cidade vista de cima; de um lado, antes da tragédia, do outro, com tom barrento, percebe-se a ausência de diversas edificações e um aumento no canal de um corpo d'água central que havia
Antes e depois da forte chuva e do rompimento de barragem na cidade de Derna, na Líbia, vista por satélite - Planet Labs/Reuters

O estudo aponta que a chuva da forma como foi vista na Líbia é o tipo de evento que ocorre uma vez a cada 300 ou 600 anos —essa é uma das formas usadas para falar de eventos extremos, apontando a frequência com que uma situação acontece.

Os pesquisadores destacam que a magnitude do evento é muito fora do que já foi registrado anteriormente. Os dados apontam 250 mm de chuva na cidade de Derna em um período de poucas horas, cerca de 414 mm em Bayda e 240 mm em Marawah. Além da precipitação, o país também foi atingido por ventos de 70 a 80 km/h.

Para termos de comparação, as chuvas em dois dias em São Sebastião ultrapassaram os 600 mm, no começo deste ano.

A WWA, na mesma análise, também olhou para os outros países afetados pela tempestade tropical Daniel no mar Mediterrâneo. Grécia, Turquia e Bulgária também tiveram mortes —em menor escala em relação ao visto na Líbia— decorrentes das chuvas e alagamentos.

Atingida por 760 mm de chuva , a Grécia viu nascer um novo recorde de precipitação em um único dia, no que foi considerada a pior tempestade a chegar ao país desde que se tem registros (1930).

Os pesquisadores calculam que as chuvas vistas na Grécia são um evento que ocorre de uma vez a cada 80 anos até uma vez a cada 250 anos. Considerando toda a área atingida em Grécia, Bulgária e Turquia, trata-se de um evento que ocorre de uma vez a cada 5 anos até uma vez a cada 10 anos.

A Espanha também foi afetada por fortes chuvas nesse período. Segundo os cientistas, as chuvas do caso espanhol são um evento que ocorre de uma vez a cada 10 anos até uma vez a cada 40 anos.

Para a região afetada e estudada em Grécia, Bulgária e Turquia, os pesquisadores apontam que a crise do clima tornou o evento observado até 10 vezes mais provável e até 40% mais intenso.

As estimativas obtidas —que foram revisados por pares, mas não publicadas em uma revista científica— para esse caso específico possuem elevado grau de incerteza, incluindo a possibilidade de não haver participação da crise do clima.

Apesar disso, os pesquisadores dizem que múltiplas razões indicam a participação da mudança do clima. Por exemplo, já era esperado um aumento de 10% na intensidade das chuvas com a elevação da temperatura atual e já há estudos focados em precipitação intensa apontando a responsabilidade da crise climática.

"Por essas razões, não fornecemos uma estimativa central da influência das mudanças climáticas, como em estudos anteriores, em vez disso, fornecemos um limite superior do efeito", diz o material de divulgação da pesquisa, apontando um perfil de análise e resultados menos conservadores para o caso em questão.

Os pesquisadores afirmam ainda que o desastre na Líbia demonstra o desafio de infraestrutura que a crise climática traz. "Na Líbia, isso significa levar em conta o declínio de longo prazo na média de chuvas e também, ao mesmo tempo, o aumento nas chuvas extremas; uma perspectiva desafiadora, especialmente para um país assolado por crises", escrevem os autores.

Como funciona um estudo de atribuição

Apesar de eventos extremos, como chuvas e secas intensas, estarem se tornando mais comuns, nem todo caso do tipo é "produto" da crise do clima.

O grupo WWA busca respostas relacionadas a isso, ou seja, se e quão mais provável e/ou intenso um evento extremo específico em um dado lugar ficou devido à crise climática.

A WWA, em termos gerais, faz comparações a partir de enormes bases de dados e modelos climáticos da Terra. A ideia é comparar cenários que mostram como está nosso planeta hoje —muito aquecido devido, essencialmente, às nossas emissões— e uma Terra hipotética não aquecida pelos gases-estufa que emitimos.

Com o resultado da comparação, é possível ver se e como a crise do clima impactou um evento específico em um determinado local.

Situação política da Líbia piorou evento extremo

Os pesquisadores também concluem, no relatório, que o conflito em curso no país e a fragilidade estatal "agravaram os efeitos das inundações, contribuindo para a falta de manutenção e deterioração da infraestrutura das barragens ao longo do tempo".

Segundo eles, o conflito também tem limitado o planejamento para adaptação e a coordenação a respeito de uma série de questões climáticas enfrentadas pelo país, como escassez de água.

Derna foi a cidade mais impactada pela passagem da tempestade tropical Daniel. Em 10 de setembro, o rompimento de duas barragens provocou uma enxurrada de água e lama que pegou os moradores de surpresa —muitos estavam dormindo. Casas, veículos e pontes foram arrastados em direção ao mar.

Além da falta de manutenção, a pesquisa aponta que as barragem que romperam (Al-Bilad e Abu Mansour) tinham sido construídas na década de 1970 e, com isso, se basearam em pequenos registros de chuva. Dessa forma, "possivelmente não foram desenhadas para suportar um evento de chuva que ocorre uma vez a cada 600 anos", dizem os cientistas.

Recentemente, o chefe da OMM (Organização Meteorológica Mundial), Petteri Taalas, disse que a entidade tinha entrado em contato com as autoridades líbias para ajudar na reforma do sistema meteorológico, mas que os esforços foram dificultados por ameaças à segurança.

Parte da rede de observação meteorológica do país teria sido destruída, segundo Taalas, durante os conflitos internos que ocorrem no país desde 2011, na esteira da Primavera Árabe. Ao mesmo tempo, porém, o estudo da WWA aponta que três dias antes da forte chuva na Líbia, houve alertas meteorológicos e notificação das autoridades do país para que se preparassem.

Segundo reportagem da Associated Press, não havia planos de evacuação em Derna, onde houve o rompimento das barragens.

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