De comunidade com conexão precária, jovem cria aplicativos sobre biomas

Morador de zona rural na Bahia foi premiado por projetos digitais educativos

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Juazeiro (BA)

No povoado de Várzea do Mulato, a rede móvel de telefonia não chega e a conexão com internet é via rádio. Em uma das poucas casas na rua de chão de barro vermelho, um jovem subverte a lógica de trabalho local. Darlei Pereira da Silva, 27, é desenvolvedor de sistema Android. De sua cadeira gamer no escritório montado em um dos cômodos de casa, ele cria aplicativos para celulares de todo o país.

O jovem, que cresceu na comunidade onde a maioria da população é trabalhadora rural, a 20 km do centro de Senhor do Bonfim (BA), conta que não imaginava que um dia atuaria no mercado de aplicativos. "Eu não me interessava por tecnologia porque, na verdade, eu nem sabia que existia esse universo."

Silva foi o primeiro de casa a concluir o ensino médio e ingressar na faculdade. "Aqui a gente vive numa bolha. Na região, poucas pessoas fizeram faculdade. Se você não tem oportunidade, consegue criar uma pela educação", afirma.

Homem vestindo bermuda preta e camiseta branca está diante do muro branco de uma casa térrea que tem na frente um pátio com árvores e chão de terra vermelha
Darlei Pereira da Silva, 27, criador de jogos educativos, em sua casa no povoado de Várzea do Mulato, em Senhor do Bonfim, na Bahia - Karen Lima/Folhapress

O incentivo maior veio da mãe. A lavradora Jucilene Alves da Silva, 51, que não teve a oportunidade de estudar e nunca saiu do sertão da Bahia, se orgulha de ver o filho cruzando fronteiras.

"As coisas eram difíceis demais, mas eu fiz de tudo por eles. Eu sempre dizia que não aprendi, mas meus filhos, com fé em Deus, iam aprender, porque só quem tem estudos alcança alguma coisa", conta ela.

Foi no curso de geografia da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco) que o jovem começou a ver as oportunidades do mundo tecnológico. Em uma das longas conversas de uma viagem de carro de mais 2.400 km com destino ao Paraguai, onde apresentou um trabalho sobre geoprocessamento de campo em 2018, surgiu a ideia do primeiro aplicativo.

A partir dali, criou um guia online da reserva ambiental Maria Maria, que fica em Saúde (BA), onde estagiou.

Silva começou a criar aplicativos sem cursos nem orientações diretas: elaborava as ideias e fazia as programações seguindo tutoriais na internet, mesmo com o obstáculo do idioma, já que a maior parte desses conteúdos está disponível em inglês.

O sucesso do primeiro experimento entre professores da universidade e também em escolas da região motivou o jovem a trocar de área. Após concluir a licenciatura, começou engenharia da computação na mesma universidade.

Homem segura celular e o aponta para a câmera em uma rua de terra
Darlei Pereira da Silva, morador de Senhor do Bonfim (BA) mostra aplicativo educativo que criou - Karen Lima/Folhapress

Seu primeiro lançamento que foi parar na loja de aplicativos do sistema operacional Android foi "Conheça os Biomas". O app educacional conta as principais características de cada bioma brasileiro, como área espacial, clima, fauna e flora.

Silva diz receber muito retorno de professores que usam a ferramenta em sala de aula. Por isso, considera esse o seu maior sucesso, com mais de 5.000 downloads.

Com os aplicativos educativos, Silva já conquistou outros reconhecimentos na área. Em 2021, uma ideia sua foi selecionada no concurso Campus Mobile, realizado na USP (Universidade de São Paulo) em parceria com o Instituto Claro.

Na competição, o baiano criou o "Mobbilizy Game", que explica de forma lúdica a prevenção de doenças para crianças e adolescentes. O trabalho ficou em primeiro lugar da categoria.

Um dos desafios dos jogos é combater o mosquito Aedes aegypti, tampando caixas d’água. Outro é pegar álcool em gel e matar o coronavírus. O diferencial da criação de Silva está na contextualização com sua região. Em estética de quadrinhos, o game se passa na cidade virtual de Bonfinópolis e tem o típico sertanejo como personagem.

Silva aponta na tela do celular os desenhos de plantas nativas do sertão, como umbuzeiro e cajueiro. A inspiração para adaptar o conteúdo à realidade local vem dos estudos sobre Paulo Freire (1921-1997) que realizou durante a licenciatura. Ele mesmo desenhou à mão toda vegetação da região e a transferiu para o jogo.

"Além dos jogos, é preciso trazer a identidade aqui da região porque ajuda o aluno a relacionar com o cotidiano dele", explica.

Grupo sentado em um jardim
Darlei Pereira da Silva, à frente, com as irmãs Laís e Ana Kelly, o sobrinho Noah, o pai, Adailton, e a mãe, Jucilene, no povoado de Várzea do Mulato - Karen Lima/Folhapress

Como prêmio, Silva viajou para os Estados Unidos e conheceu o Vale do Silício. As mudanças na rotina ficaram evidentes. Foi selecionado para estágios de empresas multinacionais e, hoje, trabalha em regime de home office para uma empresa do Sudeste.

A faculdade também mudou, para conciliar com a rotina de trabalho. Agora, cursa análise de desenvolvimento e sistemas em uma instituição particular por EAD.

O investimento pessoal em aplicativos educativos continua, mesmo trabalhando no setor corporativo. Em agosto, lança um novo jogo, focado no aprendizado da matemática.

"Quero ajudar de alguma forma na educação, mesmo sabendo que não vai ter tanta rentabilidade", afirma.

Entre os planos do jovem, está morar no Canadá, mas diz que depois pretende voltar para a região onde cresceu. "Quero ter uma experiência diferente, mas aqui sempre vai ser minha âncora".

O exemplo de Silva é inspiração para outros jovens da região. As dúvidas chegam pelas redes sociais, estudantes de diversas cidades curiosos para saber como é trabalhar com tecnologia e como começar no setor. Em casa, a irmã mais nova seguiu os passos dele, trocou a engenharia agrícola pelo curso de análise de desenvolvimento de sistemas.

"De pouquinho em pouquinho, a gente vai convencendo o pessoal. Se a educação me ajudou a chegar onde estou, eu tenho de contribuir para os que estão por vir", diz.

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