Primeira cúpula do clima na África termina com apelo a investimentos

Declaração de Nairóbi pede que países ricos desbloqueiem recursos que impedem transição energética justa no continente

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Max Bearak
Nairobi (Quênia) | The New York Times

Chefes de Estado de toda a África concluíram na quarta-feira (6) uma cúpula climática inaugural em Nairóbi, capital do Quênia, emitindo uma declaração que pede uma reestruturação urgente da forma como as nações mais ricas se relacionam com o continente.

A declaração salientou inúmeras vezes que, em vez de ser uma vítima infeliz, a África está preparada para a liderança em matéria de energia limpa e gestão ambiental.

Mas para que isso aconteça, afirma o comunicado, os países industrializados do mundo, que são em grande parte responsáveis pela poluição que está causando as mudanças climáticas, devem primeiro desbloquear o acesso à sua riqueza através de investimentos, em vez de relegar suas contribuições à ajuda quando ocorrem catástrofes.

Mulher jovem e criança montam estrutura de uma barraca com gravetos no chão de terra, ao ar livre; ao fundo, há uma tenda já de pé e algumas pessoas
Jovem e sua sobrinha montam uma tenta com gravetos em Baidoa, na Somália, onde milhares de pessoas enfrentam seca severa - Andrea Bruce - 3.nov.2022/The New York Times

Essa falta de financiamento é um dos maiores problemas que dividem as nações ricas e pobres, à medida que o mundo luta para reduzir as emissões de dióxido de carbono. Será um dos principais pontos de discórdia na COP28, cúpula climática global da ONU que terá início em 30 de novembro em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A reunião histórica em Nairóbi foi, em parte, um esforço dos países mais pobres para amplificar seu argumento.

No evento, os investidores anunciaram que cerca de US$ 23 bilhões serão destinados a projetos que incluem microrredes solares, mercados de carbono e reflorestamento. Mas não ficou claro quanto desse dinheiro representa compromissos, não intenções.

O presidente queniano, William Ruto, que atuou como anfitrião e mestre de cerimônias da cúpula, disse que a África tem 60% do potencial mundial de energia renovável e quase um terço dos minerais cruciais para eletrificar indústrias atualmente dependentes de combustíveis fósseis, que aquecem o planeta. Entretanto, 600 milhões de pessoas na África têm pouco ou nenhum acesso à eletricidade.

"Devemos ser verdes rapidamente, antes de nos industrializar, e não o contrário", disse Ruto.

As instituições multinacionais de crédito há muito consideram vários países africanos arriscados demais para investimentos em infraestruturas como as energias renováveis, devido a preocupações com a má gestão econômica e o elevado peso da dívida, juntamente com questões como a corrupção e os conflitos.

Retrato de Ruto ao microfone, com logotipo do evento em painel atrás dele
William Ruto, presidente do Quênia, em discurso de abertura da Cúpula do Clima da África, em Nairóbi, nesta segunda (4) - Monicah Mwangi/Reuters

O documento, denominado Declaração de Nairóbi, afirma que servirá de "base para a posição comum da África" antes das conversações sobre o clima em Dubai, no final deste ano.

A cúpula atraiu dezenas de milhares de delegados de todo o mundo ao centro comercial da África Oriental. Seus eventos, que ocorreram no Centro Internacional de Convenções Kenyatta, o edifício mais emblemático do centro de Nairóbi, um arranha-céus afro-modernista construído na década de 1970, davam a sensação de uma feira comercial, exceto que o público principal eram bancos, empresas de private equity, instituições filantrópicas e governos doadores.

Pedia-se a esses potenciais investidores, especialmente aos ocidentais, que colocassem seu dinheiro onde dizem.

Apesar das promessas feitas no passado de investir mais de US$ 100 bilhões em financiamento relacionado ao clima nos países menos desenvolvidos, o mundo rico ficou muito aquém dessas metas, ao mesmo tempo que investiu bilhões de dólares em energias renováveis em seus próprios países.

"Uma injustiça arde no coração da crise climática, e sua chama está queimando esperanças e possibilidades aqui na África", disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, que foi um dos muitos dignitários internacionais presentes.

Planície desértica com diversos painéis fotovoltaicos instalados próximos ao chão
Painéis de energia solar em Goma, na República Democrática do Congo - Moses Sawasawa - 31.ago.2023/The New York Times

A tensão subjacente à cúpula ficou clara em diversos discursos nos quais os líderes africanos lamentaram a falta de urgência no cumprimento das promessas de financiamento.

Os Emirados Árabes Unidos, um dos principais produtores de petróleo do mundo e anfitrião da conferência anual da ONU sobre o clima este ano, assumiram alguns dos maiores compromissos, incluindo US$ 4,5 bilhões para energia limpa e US$ 450 milhões em créditos de carbono, embora as letras miúdas destes últimos indiquem que era uma "carta de intenções não vinculatória". Os EAU procuram reformular-se como uma superpotência de energia renovável.

Alguns países africanos dependem há muito tempo de energias renováveis para a maior parte da sua produção de energia. No Quênia, disse Ruto, mais de 90% da eletricidade são renováveis, em grande parte provenientes de fontes geotérmicas no Grande Vale do Rift.

Mas fora dos corredores do centro de convenções os quenianos faziam perguntas mais difíceis sobre a quem a conferência e seus objetivos elevados realmente serviam.

"A discussão energética mascara a nossa crise econômica", disse Mordecai Ogada, autor e uma importante voz queniana em questões ambientais.

"Sim, obtemos a maior parte da nossa eletricidade de fontes renováveis. Mas pagamos a empresas estrangeiras para gerar essa energia de forma exorbitante em moeda estrangeira", disse ele. "A produção ficou cara, o que impulsiona a inflação. No que diz respeito à vida dos quenianos, a fonte de energia é completamente imaterial."

Em fila, mulheres seguram cartaz que diz "repay climate debt reparations now"
Manifestantes seguram cartaz pedindo financiamento para perdas e danos climáticos em fila da primeira cúpula africana sobre mudança do clima, em Nairóbi (Quênia), nesta segunda (4) - John Muchucha/Reuters

A moeda do Quênia perdeu cerca de um terço do seu valor face ao dólar nos últimos dois anos, e Ruto aumentou os impostos sobre o gás e sobre as pequenas empresas, o que aprofundou a crise do custo de vida. Mais de 8 em cada 10 quenianos vivem com menos de US$ 5 por dia, segundo o Banco Mundial.

No centro do pedido dos participantes ao mundo estava o financiamento "concessional" –essencialmente, empréstimos a taxas de juros abaixo do mercado e com prazos de reembolso mais brandos.

Enormes quantidades de financiamento concessional poderão, num futuro próximo, provir do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional), entre outros grandes credores, se estes cumprirem as reformas prometidas no modo como avaliam o risco e incorporam considerações climáticas na estruturação de seus empréstimos.

"Há oito meses, ainda houve um debate no conselho do Banco Mundial sobre se os investimentos climáticos eram uma troca pelo desenvolvimento econômico", disse um alto funcionário do Tesouro dos EUA que participou da cúpula, falando sob a condição de anonimato, segundo o protocolo do Departamento do Tesouro.

O responsável disse que quase US$ 50 bilhões em financiamento que poderiam ser destinados ao financiamento concessional dos Estados Unidos através de bancos multilaterais de desenvolvimento aguardavam a aprovação do Congresso. O presidente Joe Biden disse que deseja que o Congresso reserve mais de US$ 11 bilhões para ajuda climática, mas conseguiu apenas US$ 1 bilhão no último orçamento.

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