Descrição de chapéu Livros indígenas

Costumes brasileiros não sustentam a democracia, diz antropólogo Roberto DaMatta

Aos 87 anos, pesquisador reencontra indígenas apinayé e relança clássico da antropologia

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São Paulo

"A polaridade existe para distinguir melhor as coisas, não para liquidar o outro", diz o antropólogo Roberto DaMatta, que desvendou a organização através de um sistema de metades dos indígenas apinayés.

"Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayés", foi publicado em 1976, tornou-se um clássico da antropologia brasileira e, após quatro décadas fora de catálogo, ganha nova edição da editora Rocco.

Aos 87 anos, DaMatta voltou a visitar o território apinayés, que fica entre a margem esquerda do rio Tocantins e a margem direita do rio Araguaia, no estado do Tocantins. A visita aconteceu no último agosto, a convite do diretor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Celso Castro. "Os rituais estão vivos", DaMatta relata à Folha.

Retrato de homem branco, de cabelos e barba brancos, usando camisa preta
Antropólogo Roberto DaMatta, na sua casa, em Niterói (RJ). DaMatta está relançado o livro "Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinayé" - Eduardo Anizelli - 11.jan.2024/Folhapress

DaMatta também foi pioneiro nos estudos de rituais e festivais em sociedades industriais e se destacou com outra obras, como "Carnavais, malandros e heróis" (1979) e "A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil" (1984). Para o antropólogo Cesar Gordon, que assina as orelhas da nova edição, "DaMatta viu o Brasil pelos índios, e viu os índios pelo Brasil".

É com esse olhar dialógico que DaMatta analisa as realidades indígena e brasileira nesta entrevista, comparando a divisão de metades dos apinayés com a polarização política brasileira. "Não há nenhuma sociedade humana, seja ela tribal ou industrial, que não tenha conjugado de alguma maneira a esquerda com a direita", afirma.

O antropólogo também critica o marco temporal das terras indígenas. "A gente já sabe que quem é privilegiado vai ser inocentado", aponta.

Além do retorno da preocupação com as terras já demarcadas, o reencontro com os apinayés contou com outra surpresa: o afeto. DaMatta se diz recompensado pela dedicação aos indígenas e revela uma vontade de conhecer, após sua morte, outra aldeia apinayés: a dos mortos, onde as almas têm fim. "Porque eu não quero vida eterna, acho que é uma chatice".

Como funciona o mundo dividido dos apinayés?
Eles têm um um sistema de nominação curioso, porque os nomes não individualizam, mas classificam as pessoas. Dão direitos que as pessoas façam cerimoniais e pertençam a certos grupos. Todo mundo tem pais e mães adotivos, que também são recriminados quando a criança sofre alguma coisa.

E tem uma coisa que os distingue de todas as outras populações tribais brasileiras que é uma corrida com toras de babaçu. Eles correm em dois times, que são as duas metades. As toras são nominadas, são transformadas em personalidades. O curioso é que o ideal é chegar junto —não é ganhar. Então a polaridade existe para que a gente possa distinguir melhor as coisas, e não para liquidar o outro.

Como esse sistema dialético de oposições e metades se diferencia da polarização atual no campo político no Brasil?
A maneira mais óbvia e intuitiva de entender o mundo é colocando as coisas em contraste. Nos apinayés, as metades não entram no sistema político. Elas não são politizadas no sentido de que uma vai vencer a outra. É uma dialética curiosa, porque eventualmente uma fica mais importante que a outra. Quando se trata de reprodução, a mulher fica superior ao homem, porque ela carrega o feto. Se você falar em caça ou força, o homem passa a ser o ponto central.

Essas polarizações têm que ser compreendidas à luz da história e não podem ser calcificadas, imobilizadas, porque aí perdem sua função, que é entender o mundo. Em vez disso, você vai desentendê-lo. E é o que está acontecendo no Brasil. Pior do que o desentendimento é essa classificação daquele que não pertence ao seu polo como uma pessoa inferior ou como ignorante.

É possível aprender com os apinayés, no sentido de superar esse dualismo maniqueísta em favor de uma elaboração mais dialética?
Não há nenhuma sociedade humana, seja ela tribal ou industrial, que não tenha conjugado de alguma maneira a esquerda com a direita. O sistema americano, por exemplo, famoso pelo capitalismo dos super ricos, tem um sistema educacional primário e secundário gratuito —socialista. E os reacionários americanos lutam contra isso, não gostam.

Mas há uma diferença fundamental nessa polarização que hoje aparece no Brasil. No século 19, havia uma outra, que eu acho que está por trás desta: a polarização de quem era escravo e quem era livre; quem era preto e quem era branco. Era uma confusão enorme, de onde acredito que venha essa nossa ambiguidade, que só agora a gente está tentando situar e admitir.

O sr. voltou a visitar os apinayés no último agosto. O que lhe surpreendeu nesse reencontro?
O relacionamento afetivo e pessoal. Eu não esperava. Os apinayés têm uma saudação lacrimosa. Nós choramos na despedida. Eles, na chegada. Quando cheguei, tinha uma aldeia inteira para me receber cantando. E o choro tem um elemento de ritmo, que é incorporado numa canção. Um choro harmônico. Foi muito emocionante.

Descobri o hóspede e não o convidado da antropologia. Então há o afeto, que está faltando no Brasil, na política brasileira. O nosso afeto universal que não discrimina ninguém.

No livro, o sr. cita que os cerimoniais estavam em decadência. Como os vê hoje?
Os rituais estão vivos. As aldeias estão vivas. Evidentemente, tem uma influência muito grande regional. Todos eles são bilíngues, coisa que não existia antigamente. As mulheres andavam somente de tanga, hoje elas usam uma blusa. Mas na minha chegada, todos estavam vestidos da forma tradicional.

Há novas ameaças ao território?
A grande preocupação deles era a demarcação da terra, que foi demarcada. Agora querem fazer outro marco [temporal para as terras indígenas]?

O Brasil muda para pior coisas que funcionam bem. Vai voltar a ter fazendeiros que dizem que a terra era deles, vão ter processos legais dentro desse jurisdicismo brasileiro, em que a gente já sabe que quem é privilegiado vai ser inocentado. Vai beneficiar o agronegócio.

Eu não poderia escrever outro livro sobre os apinayés. Esse livro é um registro histórico e é a vida deles.

Em outro livro seu, ‘A casa e a rua’, o sr. também estabelece duas metades. Como elas dão conta de interpretar o Brasil?
A casa funciona sempre; a rua, não. As obrigações da casa são eternas. Já o Estado é isso: estou com 87 anos e vivi tudo: parlamentarismo, golpe de Estado, neofascismo militar.

O Brasil é uma sociedade colonizada por um colonizador altamente centralizador. Esse controle se reproduz nessa visão de que "o problema não é meu, é do Estado". Mas os costumes que estão vigentes, não são seus?

Nós não fizemos uma crítica política suficiente aos nossos costumes —às amizades, ao compadrio, às dívidas que a gente tem com as pessoas que a gente ama.

Você adota a democracia, mas você não tem costumes que sustentem a democracia. Esse é o ponto.

Homem branco, de cabelos e barba também brancos, usando camiseta preta, sentado em mesa cercado de livros, com estante de livros ao fundo
Antropólogo Roberto DaMatta - Eduardo Anizelli - 11,jan.2024/Folhapress

O sr. diz que seu trabalho na antropologia é "a vitória de ter a certeza da excepcionalidade da variedade humana". Como essa visão contribuiria para costumes que sustentam a democracia, em um país que ficou mais intolerante?
A diversidade, ao mesmo tempo que pode ser uma condenação em regimes autoritários e fascistas, tem o lado da compaixão, da comiseração. É onde temos que botar mais ficha, nesse lado que combina direita com esquerda. É a capacidade de compreender melhor nossa condição. Somos contraditórios, paradoxais. E, por outro lado, temos um equalizador terrível e maravilhoso: todos somos finitos. Nenhum de nós resiste a um determinado tempo.

Como os apinayés encaram a morte?
Eles têm um materialismo singelo. Você morre, aí vai para a aldeia dos mortos. Lá, tem uma vida longa, maior do que aqui. Aí um dia na aldeia dos mortos, você fica velho e morre. Aí sai uma segunda alma, que entra num toco de pau e desaparece. Estou muito inclinado, quando voltar lá no próximo agosto, a pedir se eu posso ir para essa aldeia dos mortos, para morrer. Porque não quero vida eterna, acho que é uma chatice.

Esse pedido lhe converteria à crença dos apinayés?
Não sei como vai ser. Talvez eu possa ser enterrado lá. O que posso dizer é que o reencontro com uma população que você dedicou tanta energia para estudar, fez tanto sacrifício —fiquei sozinho, meu filho nasceu aqui e eu estava lá— é uma coisa muito compensadora. É uma coisa extraordinariamente rica, que vale a pena.

RAIO-X
Roberto DaMatta, 87

Nascido em Niterói (RJ) em 1936, é antropólogo, graduado em História pela Universidade Federal Fluminense e doutor pela Universidade Harvard (EUA). Professor emérito da universidade de Notre Dame, foi chefe de antropologia do Museu Nacional. É autor de mais uma dezena de livros. Casado, teve três filhos e é avô de 13 netos.

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