Em votação, cientistas negam que estejamos no Antropoceno, a época geológica dos humanos

Grupo rejeitou que mudanças sejam profundas o bastante para encerrar o Holoceno

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Raymond Zhong
The New York Times

O Triássico foi o amanhecer dos dinossauros. O Paleogeno viu a ascensão dos mamíferos. O Pleistoceno incluiu as últimas eras glaciais.

Está na hora de marcar a transformação da humanidade no planeta com seu próprio capítulo na história da Terra, o "Antropoceno", ou a época humana?

Ainda não, decidiram os cientistas, após um debate que durou quase 15 anos. Ou um piscar de olhos, dependendo do ângulo pelo qual você olha.

Um comitê de cerca de duas dezenas de estudiosos votou, em grande maioria, contra uma proposta de declarar o início do Antropoceno, uma época recém-criada do tempo geológico, de acordo com um anúncio interno dos resultados da votação visto pelo The New York Times.

Árvores com as folhas amareladas pelo outono circundam lago de águas transparentes
O lago Crawford, no Canadá, foi sugerido por pesquisadores como o ponto que marca o começo do Antropoceno - Adobe Stock

Pela linha do tempo atual dos geólogos da história de 4,6 bilhões de anos da Terra, nosso mundo agora está no Holoceno, que começou há 11,7 mil anos com o recuo mais recente dos grandes glaciares.

Alterar a cronologia para dizer que avançamos para o Antropoceno representaria um reconhecimento de que as mudanças recentes induzidas pelo homem nas condições geológicas foram profundas o suficiente para encerrar o Holoceno.

A declaração moldaria a terminologia em livros didáticos, artigos de pesquisa e museus em todo o mundo. Orientaria os cientistas em sua compreensão do nosso presente ainda em desenvolvimento por gerações, talvez até por milênios.

No fim das contas, porém, os membros do comitê que votaram sobre o Antropoceno nas últimas semanas não estavam apenas considerando o quão determinante esse período havia sido para o planeta. Eles também tiveram que considerar quando, precisamente, ele começou.

Lago de água azul
Lago Crawford, na província de Ontario, no Canadá; local foi sugerido por cientistas como marco do Antropoceno, a época geológica dos humanos - Conservation Halton/Divulgação

Pela definição que um painel anterior de especialistas passou quase uma década e meia debatendo e elaborando, o Antropoceno começou na metade do século 20, quando testes de bombas nucleares espalharam material radioativo por todo o nosso mundo.

Para vários membros do comitê científico que avaliaram a proposta do painel nas últimas semanas, essa definição era muito limitada, muito recente e inadequada para ser um marco adequado da remodelação do Homo sapiens no planeta Terra.

"Isso restringe, confina, estreita toda a importância do Antropoceno", disse Jan A. Piotrowski, membro do comitê e geólogo da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. "O que estava acontecendo durante o início da agricultura? E a Revolução Industrial? E a colonização das Américas, da Austrália?"

"O impacto humano vai muito mais fundo no tempo geológico", disse outro membro do comitê, Mike Walker, cientista da Terra e professor emérito da Universidade de Gales Trinity Saint David. "Se ignorarmos isso, estamos ignorando o verdadeiro impacto que os humanos têm em nosso planeta."

Horas após a circulação dos resultados da votação dentro do comitê nesta terça-feira (5) de manhã, alguns membros disseram que ficaram surpresos com a margem de votos contra a proposta do Antropoceno em comparação com os a favor: 12 a 4, com 2 abstenções.

Mesmo assim, nesta terça de manhã não ficou claro se os resultados representavam uma rejeição conclusiva ou se ainda poderiam ser contestados ou apelados. Em um e-mail para o Times, o presidente do comitê, Jan A. Zalasiewicz, disse que havia "algumas questões procedimentais a considerar", mas se recusou a discuti-las mais a fundo.

Zalasiewicz, geólogo da Universidade de Leicester, expressou apoio à canonização do Antropoceno.

Essa questão de como situar nosso tempo na narrativa da história da Terra colocou o mundo dos guardiões do tempo geológico sob uma luz desconhecida.

Os capítulos grandiosamente nomeados da história de nosso planeta são governados por um grupo de cientistas, a União Internacional de Ciências Geológicas. A organização usa critérios rigorosos para decidir quando cada capítulo começou e quais características o definiram. O objetivo é manter padrões globais comuns para expressar a história do planeta.

Os geocientistas não negam que nossa era se destaca dentro dessa longa história. Radionuclídeos de testes nucleares. Plásticos e cinzas industriais. Poluentes de concreto e metal. Aquecimento global rápido. Aumento acentuado de extinções de espécies. Esses e outros produtos da civilização moderna estão deixando vestígios inconfundíveis no registro mineral, especialmente desde meados do século 20.

Ainda assim, para se qualificar para a entrada na escala de tempo geológico, o Antropoceno teria que ser definido de uma maneira muito específica, que atendesse às necessidades dos geólogos e não necessariamente dos antropólogos, artistas e outros que já estão usando o termo.

Por isso, vários especialistas que expressaram ceticismo quanto à consagração do Antropoceno enfatizaram que o voto contra não deve ser interpretado como um referendo entre cientistas sobre o amplo estado da Terra.

"Este é um assunto específico e técnico para os geólogos, em sua maioria", disse um desses céticos, Erle C. Ellis, um cientista ambiental da Universidade de Maryland. "Isso não tem nada a ver com a evidência de que as pessoas estão mudando o planeta", afirmou Ellis. "A evidência continua crescendo."

Francine M.G. McCarthy, micropaleontóloga da Universidade Brock em St. Catharines, Ontário (Canadá), é tem visão oposta: ela ajudou a liderar algumas das pesquisas para apoiar a ratificação da nova época.

"Estamos no Antropoceno, independentemente de uma linha na escala de tempo", disse McCarthy. "E agir de acordo é o nosso único caminho a seguir."

A proposta do Antropoceno teve início em 2009, quando um grupo de trabalho foi convocado para investigar se as recentes mudanças planetárias mereciam um lugar na linha do tempo geológica.

Após anos de deliberação, o grupo, que passou a incluir McCarthy, Ellis e cerca de três dezenas de outros, decidiu que sim. O grupo também decidiu que a melhor data de início para o novo período era por volta de 1950.

O grupo então teve que escolher um local físico que mostrasse de forma mais clara uma quebra definitiva entre o Holoceno e o Antropoceno. Eles escolheram o Lago Crawford, em Ontário, no Canadá, onde as águas profundas preservaram registros detalhados de mudanças geoquímicas nos sedimentos do fundo.

No outono passado, o grupo de trabalho enviou sua proposta do Antropoceno para o primeiro dos três comitês governantes da União Internacional de Ciências Geológicas —60% de cada comitê precisam aprovar a proposta para que ela avance para o próximo.

Os membros do primeiro comitê, a Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, enviaram seus votos a partir do início de fevereiro. (Estratigrafia é o ramo da geologia que se dedica ao estudo das camadas de rocha e como elas se relacionam no tempo. O Quaternário é o período geológico em curso que começou há 2,6 milhões de anos.)

De acordo com as regras da estratigrafia, cada intervalo de tempo da Terra precisa de um ponto de partida claro e objetivo, que se aplique em todo o mundo. O grupo de trabalho do Antropoceno propôs meados do século 20 porque isso abrangia a explosão do crescimento econômico pós-guerra, a globalização, a urbanização e o uso de energia.

Mas vários membros da subcomissão disseram que a transformação da humanidade na Terra era uma história muito mais abrangente, que talvez nem tenha uma única data de início em todas as partes do planeta.

Por isso, Walker, Piotrowski e outros preferem descrever o Antropoceno como um "evento", não como uma "época". Na linguagem da geologia, eventos são um termo mais amplo. Eles não aparecem na linha do tempo oficial, e nenhum comitê precisa aprovar suas datas de início.

No entanto, muitos dos acontecimentos mais significativos do planeta são chamados de eventos, incluindo extinções em massa, expansões rápidas da biodiversidade e o preenchimento dos céus da Terra com oxigênio há 2,1 bilhões a 2,4 bilhões de anos.

Mesmo que o voto da subcomissão seja mantido e a proposta do Antropoceno seja rejeitada, a nova época ainda poderá ser adicionada à linha do tempo em algum momento posterior. No entanto, terá que passar por todo o processo de discussão e votação novamente.

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