Crédito financia 21 mil fazendas que avançam por floresta e banca desmate em área indígena, diz Greenpeace

Levantamento de ONG aponta empréstimos a imóveis que se sobrepõem a unidades de conservação e terras públicas na amazônia

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Manaus

Um levantamento feito pelo Greenpeace aponta concessões de crédito rural a propriedades na amazônia que se sobrepõem a unidades de conservação, terras indígenas e florestas públicas sem destinação específica, além de financiamentos a imóveis rurais com embargos pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

O relatório da ONG afirma que bancos públicos e privados destinaram recursos, de 2018 a 2022, a 41 imóveis rurais localizados em áreas de proteção integral na amazônia, nos estados de Amazonas, Pará, Rondônia, Mato Grosso e Maranhão. Atividades econômicas são vetadas em unidades de conservação do tipo.

O Greenpeace mapeou concessões de crédito rural, no mesmo período de análise, a 15 propriedades que têm alguma sobreposição com a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, onde vivem nove povos indígenas, entre eles grupos em isolamento voluntário. O território é um dos mais pressionados por grilagem e desmatamento na amazônia.

Gado pastando em área desmatada vista de cima
Fazenda com gado dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Alvorada d'Oeste (RO) - Marizilda Cruppe/Greenpeace Brasil/Divulgação

Outros seis territórios tradicionais –Kayabi (MT), Urubu Branco (MT), Amanayé (PA), Alto Rio Guamá (PA), Rio Omerê (RO) e Arariboia (MA)– têm sobreposição com propriedades rurais financiadas com crédito bancário, conforme o levantamento. Ao todo, as sobreposições envolvem 24 imóveis.

Segundo a ONG, o crédito rural contemplou ainda 21.692 imóveis com sobreposição a florestas públicas não destinadas; 798 com áreas embargadas pelo Ibama; e 29.502 propriedades com desmatamento recente, levando em conta o período de 2018 a 2022.

"Os resultados da análise sinalizam para a necessidade de um olhar mais atento e rigoroso para a concessão de crédito e a implementação de medidas mais restritivas para evitar ou minimizar danos ambientais que ocorrem dentro das lacunas nas regulações vigentes", diz o Greenpeace no relatório.

"Isso e o monitoramento contínuo das propriedades financiadas garantirá maior progresso rumo à meta de zerar o desmatamento no bioma", completa. "Entes públicos, empresas, instituições financeiras e investidores devem atuar para interromper imediatamente o direcionamento de recursos para quem desmata e viola direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais."

O governo Lula (PT) prometeu zerar o desmatamento da amazônia até 2030, uma meta que compõe o compromisso brasileiro com o Acordo de Paris. Definido em 2015 no âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas), o acordo busca limitar o aquecimento global em 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais.

Nos últimos cinco anos, a amazônia perdeu 54,6 mil km2 em território brasileiro, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). O ritmo de aumento da devastação foi interrompido no primeiro ano do governo Lula.

Bancos operam crédito rural para atividades como compra e manutenção de animais, formação de pastagem, extração de madeira e aquisição de máquinas e equipamentos. O dinheiro com juros subsidiados acaba bancando o desmatamento de áreas preservadas de amazônia, inclusive em unidades de conservação, terras indígenas e florestas não destinadas, aponta o Greenpeace.

Vista aérea de uma plantação
Plantação em fazenda dentro da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Alvorada d'Oeste, em Rondônia - Marizilda Cruppe/Greenpeace Brasil/Divulgação

A ONG afirma também que a concessão de crédito sem critérios alimenta a grilagem de terras, especialmente em áreas de floresta onde ainda não houve uma destinação por parte da União, como a criação de uma unidade de conservação ou de um assentamento agroextrativista.

Para 12 casos, o relatório faz um detalhamento do crédito rural concedido e indica as irregularidades e falhas. Os financiamentos somam R$ 43 milhões.

Dos 12 casos, 7 contaram com crédito liberado pelo Banco da Amazônia e 5 pelo Banco do Brasil. Os dois bancos têm a União como principal acionista.

Vista aérea de desmate
Desmate em fazenda sobreposta à Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Alvorada d'Oeste (RO) - Marizilda Cruppe/Greenpeace Brasil/Divulgação

Em nota, o Banco da Amazônia diz que aperfeiçoa critérios de avaliação de risco socioambiental e climático e que, hoje, faz verificação automática de ocorrência de embargos e de sobreposição com áreas indígenas, quilombolas, reservas públicas e unidades de conservação.

O Banco do Brasil afirma que sua política de crédito segue critérios socioambientais. Um processo automatizado, que envolve inteligência artificial, verifica se a área a ser financiada tem restrições legais, disse a instituição, em nota.

"Exige-se dos tomadores de crédito a apresentação de documentos que comprovem a regularidade socioambiental dos empreendimentos. As operações de crédito contam com cláusulas que permitem a decretação do vencimento antecipado e a suspensão imediata dos desembolsos em caso de ocorrência de infringências socioambientais", cita a nota.

Segundo o Greenpeace, propriedades com CAR (cadastro ambiental rural) cancelado e que se sobrepõem à terra Uru-Eu-Wau-Wau tiveram acesso a crédito rural.

"Cercada por uma das áreas onde o desmatamento ilegal mais avança na região amazônica, a Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau é hoje um dos casos mais emblemáticos da frouxidão que tem marcado a oferta de crédito", diz a ONG.

O Banco do Brasil fez 24 operações de crédito com 15 propriedades rurais que se sobrepõem, em algum grau, com a terra indígena ou com o parque que está na mesma área, conforme o levantamento.

Uma sobreposição é conhecida desde 2017 e, mesmo assim, o banco fez dois empréstimos, segundo o Greenpeace.

Em Lábrea, no sul do Amazonas, uma das fronteiras do desmatamento da amazônia, uma fazenda de 130 mil hectares se sobrepõe à Flona (Floresta Nacional) do Iquiri —a sobreposição chega a 68% da área, conforme a ONG.

O Banco da Amazônia fez cinco operações de crédito relacionadas à propriedade, no valor de R$ 4,3 milhões, em 2019 e em 2021, de acordo com o relatório. O dinheiro se destinou à compra de animais e máquinas.

O levantamento diz que o proprietário da fazenda é Ricardo Villares Lot Stoppe. Procurado pela reportagem, o Grupo Ituxi, que administra a área, respondeu, após a publicação, que o local já era ocupado antes da criação da Flona do Iquiri.

"Em 2008, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto criando a unidade de conservação ambiental Floresta Nacional do Iquiri. Com isso, uma parte da fazenda passou a integrar a Flona", diz o grupo empresarial.

Ainda de acordo com o Grupo Ituxi, o ICMBio não fez a desapropriação da terra no prazo de cinco anos, como prevê a lei. "Durante todo esse prazo, o ICMBio se manteve omisso, sem ao menos ter feito qualquer
contato prévio para negociar o trâmite das áreas", diz.

O Ituxi busca na Justiça que o decreto que criou a Flona seja considerado caduco. Em liminar, o grupo obteve autorização para seguir com o uso da terra enquanto o julgamento não é concluído.

O Banco da Amazônia, por sua vez, em nota, diz que "as operações de crédito se destinavam a atividade de manejo florestal, devidamente licenciada pelo órgão competente pela emissão das licenças para extração e comercialização de madeira legal".

Outro caso citado no relatório é o de uma fazenda em Rio Branco, no Acre, de propriedade de Roque Reis Barreiros Júnior. Houve desmatamento na área, com indícios de ilegalidade entre 2019 e 2022.

Metade da área informada num CAR da fazenda se sobrepõe a uma floresta pública não destinada, conforme o relatório, que lista um empréstimo do Banco do Brasil e outros do Banco da Amazônia para bovinocultura, lavoura e aquisição de máquinas e veículos. O valor soma R$ 16,7 milhões.

A reportagem enviou questionamentos a e-mail informado pela secretaria da empresa de Barreiros Júnior. Não houve resposta.

Já o Banco da Amazônia afirma a análise feita não constatou sobreposição a florestas públicas. "O CAR do cliente não apresenta qualquer irregularidade."

Uma resolução de 2023 do CMN (Conselho Monetário Nacional) ampliou restrições para concessão do crédito rural, com impedimento de empréstimos a imóveis com inscrição cancelada ou suspensa no CAR; com sobreposição a unidades de conservação, terras indígenas e florestas públicas não destinadas; e com áreas embargadas.

"Recomendamos que os bancos revisem todas as operações de crédito concedidas antes da resolução e que ainda estão vigentes", diz o Greenpeace.

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