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É possível conciliar proteção ao mar com mineração, diz brasileira candidata a liderar tema na ONU

Entidade que delibera sobre atividade polêmica 'passa por uma crise de governança' na visão da oceanógrafa Leticia Carvalho

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Madri

Com quase duas décadas de experiência no setor regulatório no Brasil e há cinco anos atuando no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), a oceanógrafa Leticia Carvalho é candidata ao posto de secretária-geral da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês), entidade responsável pelas regras da controversa mineração em alto-mar.

Leticia Carvalho, 50, concorre contra o atual líder da organização, o britânico Michael Lodge, que tenta seu terceiro mandato. Há muito tempo criticado por ambientalistas por sua proximidade com as mineradoras, o adversário da brasileira —que é apoiado no pleito por Kiribati, não pelo Reino Unido— enfrenta agora também questionamentos sobre o uso de recursos da entidade.

Em entrevista à Folha a partir de Kingston, na Jamaica, onde acontece a eleição na próxima sexta-feira (2), a candidata se disse confiante na vitória e defendeu a necessidade de trazer mudanças à organização que, segundo ela, "passa por uma crise de governança".

A oceanógrafa afirma que é possível conciliar o desenvolvimento de um código de mineração em alto-mar e a proteção do meio ambiente, mas reconhece que inevitavelmente "haverá sacrifícios".

Leticia Carvalho, diretora de oceanos e águas doces no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente); brasileira é candidata a chefiar a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) - Divulgação

Um dos principais objetos da ISA, a mineração em alto—mar —que ainda não existe comercialmente, apenas através de licenças exploratórias de pesquisa— é criticada por ambientalistas, que apontam a possibilidade de danos irreversíveis aos ecossistemas. A demanda de componentes para bateria de carros elétricos, no entanto, tornou esse tipo de extrativismo atraente para segmentos da indústria.

Para Leticia Carvalho, o fracasso no estabelecimento de regras por parte da ISA pode encorajar países a avançarem por conta própria, e sem as devidas salvaguardas ambientais, dentro do território de suas águas jurisdicionais.

Se for eleita, a brasileira pode se tornar a primeira mulher a liderar a entidade. A candidatura brasileira foi elogiada, entre outras entidades, pela Liga das Mulheres pelo Oceano, que reúne mais de 2.500 mulheres ligadas à conservação marinha no Brasil e no mundo, em uma carta também assinada pelo Greenpeace Brasil, Oceana, WWF-Brasil e Painel Mar.

Por que a senhora decidiu se candidatar à liderança da ISA?
Eu comecei minha carreira como cientista, mas migrei para a área de políticas públicas e passei a trabalhar com orgulho na tradução do conhecimento científico em medidas regulatórias que tenham o objetivo de estabelecer o uso sustentável e eficiente de recursos.

Coincidentemente, eu tive um envolvimento muito grande, durante a minha carreira no Brasil, com a regulação das atividades de exploração e explotação de óleo e gás nas bacias sedimentares marítimas.

Acho que tudo me traz à ISA, que passa por uma crise de governança. É uma organização considerada obscura para muitos, mesmo opaca de uma certa forma. E eu trago também a minha experiência na ONU, como diplomata internacional, como secretária-executiva de vários processos de negociação.

Quais são as suas principais propostas para esta organização que, nas suas próprias palavras, passa por uma crise de governança e, em muitos sentidos, também de imagem?
Eu trago para três propostas principais: mais transparência e responsabilidade; construção de capacidades para que os países possam participar em condições de igualdade; e incorporação de mais ciência [nos processos da ISA], para além daquela que simplesmente é produzida nos contratos [pelas empresas interessadas].

Com certeza absoluta, temos de trazer um elemento de transparência e de "accountability" na gestão. Eu participei agora de uma reunião onde o comitê de finanças [da ISA] estava apresentando seu relatório. Diversos países levantaram suas bandeiras dizendo que não viam clareza na alocação de gastos e de custos, pedindo explicações sobre aspectos de gestão interna, sobre extinção e criação de cargos que eventualmente não tenham passado pela tomada de decisão do Conselho da Assembleia. Eu buscarei aproximar muito mais a ISA das boas práticas e regras da ONU em relação ao uso de recursos públicos.

Também precisamos mobilizar recursos para garantir que a participação dos países não seja apenas física. Os delegados chegam com uma enorme assimetria de conhecimento. Principalmente entre aqueles que têm contratos e estão à frente do processo de mineração.

Quero ainda trabalhar para que o código de mineração possa incorporar os elementos científicos mais recentes, inclusive produzidos pela própria estrutura da ISA, a partir dos dados que são obrigatoriamente produzidos pelos contratantes [da pesquisa de mineração].

Como a senhora pretende incorporar mais ciência a essas processos?
Eu teria uma visão muito mais aberta, muito mais encorajadora para o uso e o acesso aos dados [produzidos pelas empresas] para a transformação disso em conhecimento. E também para incorporação dessas informações a fontes independência.

Essa pesquisa é tão difícil, tão custosa e tão especializada, que não é possível que não tenhamos capacidade de dialogar cientificamente. Eu acho que toda a discussão dentro da ISA e todo o debate sobre a mineração enriqueceria muito se houvesse um esforço do secretariado em considerar esses dados adicionais.

Eu vejo que há na atual gestão um apartamento, uma dificuldade muito grande em recepcionar a informação que não vem dos contratantes.

Qual a sua posição quanto à possibilidade de uma moratória, ou de uma pausa, como defende o Brasil, na mineração em alto-mar?
O papel do secretário-geral não é tomar esta decisão. Quem faz isso é o conselho, os estados-membros. Isso precisa ficar muito claro, porque o secretário-geral precisa ser, por definição, neutro.

Mas há um espectro de opiniões. Há alguns que consideram haver informação e capacidade suficiente para o início de uma uma atividade comercial imediata, já no ano que vem. Existem outros que inclusive advogam que não há necessidade dessa fonte de minerais e de metais, porque a tecnologia para as baterias tem evoluído e outras fontes poderiam ser utilizadas.

Nódulos de manganês, principais alvos da mineração do fundo do mar, na Zona Clarion-Clipperton, no Pacífico, em imagem feita em abril de 2015 - Dilvugação/JPI Oceans/Geomar

Nesse meio do caminho há aqueles, que eu acho que somam uma grande maioria, que acreditam que mais tempo traria mais possibilidade de dar sentido aos dados existentes, de identificar as lacunas no conhecimento.

Particularmente, a opinião da Leticia como formadora de política e como cientista, é de que é possível uma conciliação entre o desenvolvimento de um código de mineração que tem um prazo para ser terminado, que seria no ano que vem, com salvaguardas que permitam ao legislador mediar o que pode ser feito imediatamente e o que precisa de mais tempo.

Essa definição de regras tem condições de ser feita agora?
Eu tendo a avaliar que, do ponto de vista científico, tempo adicional ajudaria o conselho a ter melhor entendimento na definição das regras. Ao mesmo tempo, como gestora, como secretária-executiva, eu vejo que o conselho pode dar poderes ao órgão regulador para regular as simulações [das operações de mineração] que que trazem entendimentos sobre o que seriam as atividades reais em larga escala.

O código de mineração pode ser finalizado com essas salvaguardas de empoderamento do órgão regulador, para garantir que os contratantes não avancem sem determinadas salvaguardas de escala. Por exemplo, que eles não avancem de uma simulação muito específica, realizada por um curto período em uma pequena área, para algo muito maior. Isso tudo tem de ser controlado.

A mineração em alto-mar pode ser compatível com a proteção do ambiente, haja vista que ainda se tem tão pouco conhecimento sobre as águas mais profundas? Há poucos dias, por exemplo, uma pesquisa revelou algo inédito: a produção de oxigênio nessas regiões, onde a luz não penetra e não há plantas fazendo fotossíntese.
Eu não vejo incompatibilidade. Eu acho que é possível compatibilizar. Não vou mentir: haverá sacrifício de ecosistemas, de atividades que talvez não possam estar acontecendo no mesmo espaço. Conciliação não é absoluto, é um processo. Você avalia o que pode ser sacrificado e o que precisa ser protegido, e monitora para que se possa saber como aquilo progride, sabendo que eventualmente você pode retroagir ou avançar nas suas convicções originais.

Campos de nódulos polimetálicos na zona de fratura Clarion-Clipperton - Dilvugação/JPI Oceans/Geomar

Desenvolvimento sustentável não é um resultado, é um processo. Existe um aspecto fundamental sobre a exploração e a explotação dos fundos marinhos, que é o compartilhamento de benefícios. Precisamos de salvaguardas para garantir que os benefícios não fiquem apenas com os países ricos, com capacidade de exploração.

O fracasso da Autoridade dos Fundos Marinhos em definir regras para o uso comum do alto mar representará que os poucos países que têm recursos iniciem essa atividade [mineração] em suas águas sob jurisdição, que também são vastas, não tomando precauções para preservar a área de seu vizinho ou a área comum.

Há um papel essencial dessa autoridade para as regras, mas também para o conhecimento. E isso está interligado. Essa pesquisa sobre o oxigênio vindo da interação geomorfológica em alta profundidade surgiu de um dos contratos da ISA, a partir dos trabalhos que uma das contratantes está fazendo em sua área pesquisada. Se não fosse por isso, muito provavelmente esta descoberta talvez não fosse conhecida ou ficasse restrita a quem tem condições de fazer o investimento.

Leticia Carvalho, diretora de oceanos e águas doces no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente); brasileira é candidata a chefiar a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) - Divulgação

Uma reportagem do NYT traz relatos de possívelgestão de fundos e de quina da organização para fins eleitorais pela atual liderança da ISA. Na sua avaliação, esses relatos têm fundamentos?
Essa análise cabe ao conselho e a assembleia da ISA, que estão avaliando a pertinência dos gastos executados. Ouvindo o debate, me parece haver uma sistêmica falta de confiança na alocação de recursos pelo secretariado e no fornecimento de respostas a dúvidas do estados-membros.

Devido à falta de confiança, um enorme tempo tem sido gasto na busca de esclarecimentos, gerando dúvidas sobre a aprovação do próximo programa de trabalho e orçamento para 2025-2026. Vejo com preocupação a possibilidade de um orçamento reduzido no início de uma novo ciclo de gestão e fico ainda mais preocupada com os impactos diretos nos países em desenvolvimento.

A ISA nunca teve nenhuma mulher na liderança. Que diferença isso poderia trazer para a organização?
Para contextualizar, a ONU tem outras agências relacionadas à governança dos oceanos, todas lideradas por homens: DOALOS, por Miguel Serpa Soares; Unesco-COI, por Vidar Helgesen; e Organização Marítima Internacional, com Arsenio Dominguez.

Além da ISA, eu serei a primeira mulher neste contexto [das organizações dos oceanos]. Simplesmente, a mudança é necessária. Ademais, a ISA tem um programa de empoderamento de mulheres. A melhor forma de fazer isso é colocar uma mulher na posição de secretária-geral.


RAIO-X

Leticia Reis de Carvalho, 50
Oceanógrafa formada pela Furg (Universidade Federal do Rio Grande), ocupa atualmente a função de diretora de oceanos e águas doces no Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).

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