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Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Descrição de chapéu Mente

Como a motivação se tornou a nova religião

Base da autoajuda, discurso motivacional emergiu como espécie de culto ao sucesso para os que mais se sentem longe dele

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A motivação pode ser entendida de duas maneiras. Primeiro, como uma característica natural do funcionamento do cérebro de seres vivos que se movem e buscam alcançar objetivos. Segundo, como pedagogia do comportamento e tutorial para se manipular/dirigir as outras pessoas, por meio de discursos sobre perdedores e vencedores, promessas de que as capacidades humanas são praticamente ilimitadas e um sem-fim de condicionamentos baseados em incentivos e punições.

As máximas de Ptaotepe (2400 a.C.), um conjunto de conselhos de um oficial egípcio para o seu filho, encaixam-se nessa segunda definição de motivação, assim como escritos de Cícero, Marco Aurélio e tantos outros precursores do gênero que ganhou forma definitiva na interface entre a psicologia laboratorial e a bonança do "sonho americano", durante a década de 1950.

Ilustração - Nuthawut/stock.adobe.com

A tradicional relação mestre-pupilo sai de cena e entra a autossuficiência, destacada no título do primeiro best-seller do gênero: "Autoajuda" (Samuel Smiles, 1859), que então passava por um processo de resgate.

A promessa dos anos televisivamente dourados é que cada um poderia decifrar o código da prosperidade, usando a ciência do comportamento. Isso levou ao surgimento de uma nova seção nas livrarias, a de autoajuda, que embora pareça homenagear Smiles, está mais conectada à proliferação do autoatendimento em postos de gasolina e lojas de conveniência conexas, que costumavam contar com uma pequena seleção de livros de bolso. Nas redondezas do caixa em que se paga pelo combustível, o sujeito sacia fome, sede e vazio existencial.

Depois vieram as frases motivacionais estampando cartões e brochuras, que têm menos a ver com a promessa de transformação pessoal que com a de construção de um repertório erudito de consumo rápido. A mesma promessa serviu de esteio para o lançamento da Fundação TED Talks (1984), que deu palco para uma das figuras típicas desse universo: o palestrante motivacional.

A ideia de autoajuda implica uma separação entre quem ajuda e quem é ajudado no domínio do eu. O que se assume é que o lado preguiçoso, mas também questionador e irreverente, de cada um seja reprogramado por sua contraparte planejada e executora.

Tudo aqui é muito simples, mas nem por isso redutível à simplificação concorrente —ego vs. superego— dado que a missão central da autoajuda é justamente fortalecer o ego dos que se sentem impotentes, de forma laboriosa. A fábula motivacional por excelência é a da cigarra e a formiga, enquanto a sua tese sobre o bem viver é que a experiência hedônica é sempre inferior à eudaimônica. Em todo livro do ramo está escrito: prazeres dão alegria; propósitos, felicidade.

Décadas após o seu surgimento, a autoajuda se firmou nas redes sociais como a principal via de transição da ocupação precarizada, típica dos produtores de conteúdo, para a de rentista de uma marca pessoal, típica dos influencers por personalidade. O negócio deixou de ser ler e aplicar e passou a ser replicar a assinar embaixo. De pintores a dentistas, todos querem ser gurus motivacionais pois é assim que enxergam o caminho para a notoriedade.

Parte dessa demanda surge do declínio da credibilidade das figuras de autoridade, especialmente das religiosas, o que cria um vácuo que esses discursos podem preencher. A motivação se transforma em teologia do sucesso, um correlato secular das religiões, que se expande com facilidade onde essas encontram mais barreiras.

Porém, ao contrário das religiões monoteístas da atualidade, este é um credo socialmente estratificado. Rico não precisa de discurso motivacional, o que a gente percebe analisando o perfil de quem flana entre as prateleiras de autoajuda das livrarias remanescentes.

Os preceitos capazes de converter a cigarra em formiga são indissociáveis das aspirações dos que miram as empresas altamente verticalizadas do saguão do prédio. E é aí que reside outra parte da demanda. A teologia do sucesso é uma consequência dos doze graus de separação entre analistas e presidentes. Sem experiências corporativas altamente assimétricas nada disso teria sentido.

A filosofia de vida que prosperou nos andares de cima do edifício de vidro, assim como no "rooftop" sociocultural da Vila Madalena, é o fast budismo, que elimina mosteiros e outras barreiras de entrada às experiências transcendentais, como na muito bem-produzida série de instrução meditativa "Headspace" (Netflix, 2021). Enquanto analistas recitam sete vezes ao acordar "eu sei que vou vencer", o chefe do chefe deles faz quinze minutos de meditação guiada.

A profusão de estudos sobre os efeitos positivos da meditação mindfulness na saúde confirma o que se diz por aí: o chefe tem razão. Agora, o que menos gente percebe é que essa prática também representa um bom recurso para se blindar do sofrimento alheio. Afinal, meditar significa estar mais em contato com o transcendente e, portanto, menos em contato com o ambiente social à volta, pelo menos para parte das pessoas.

Quem melhor compreendeu isso foi o filósofo Slavoj Zizek, que, em diversos escritos, destaca que o budismo foi muito utilizado, ao longo da história, para ensinar soldados a não refletirem sobre os atos de brutalidade enquanto os cometiam, mas sim a observarem, de forma distanciada, o sofrimento e a morte dos outros, como em uma verdadeira meditação contemplativa.

Não é por acaso que os vilões dos filmes de ação são sempre retratados como figuras distantes, na linha que buscamos enquanto meditamos, ao passo que o mocinho é sentimental e quase põe tudo a perder no último ato antes do desfecho (todos os filmes de ação têm a mesma estrutura).

O fast budismo é uma forma especial de motivação para os que não precisam ser incentivados a partir para ação, mas sim a sustentá-la. "A dinâmica meditativa do budismo ocidental é o modo mais eficiente de se manter plenamente aderente à lógica capitalista, preservando traços de sanidade mental" (Zizek, 2001). Sintomaticamente, pobres consomem Cortella, ricos, Monja Coen.

O indivíduo do andar de baixo precisa entrar no jogo com tudo, então, recorre à cartilha do fortalecimento do ego. O do andar de cima, que está consolidado no Banco Imobiliário, consome fast budismo para alcançar o distanciamento necessário para lidar com as pressões e responsabilidades, mediante a moderação de suas aspirações egóicas mais pungentes. Surge desse modo um tipo de devoção ao capitalismo corporativo conhecido como liderança.

Liderança, ou devoção à corporação, é a principal razão pela qual altos executivos continuam trabalhando muitos anos após tornarem seus netos milionários e assim aposentam boa parte de seus liderados.

Enquanto isso, o indivíduo do andar de baixo segue firme na toada motivacional, tentando acreditar que pode ter uma vida melhor do que a que teve até então. E é justamente por isso que dificilmente chega ao topo da hierarquia corporativa.

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