Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Álvaro Machado Dias
Descrição de chapéu Mente

Prêmio Nobel mostrou por que tendemos ao conservadorismo com o passar dos anos

Daniel Kahneman, gênio da ecologia do pensar, comprovou que pessoas respondem mais à dor e ao medo que ao prazer

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Daniel Kahneman, morto na quarta-feira (27), foi um dos maiores pensadores da condição humana a atravessar a barreira do século 21. Vale a pena ler seu obituário.

Bia tem 27 anos, não está em um relacionamento fixo, é extrovertida e muito inteligente. Ela se graduou em filosofia. Enquanto aluna, era bastante ligada a questões de discriminação e justiça social. Hoje milita pelo desarmamento global. O que é mais provável:

1. Bia ser caixa de banco; 2. Bia ser caixa de banco e feminista.

Homem de terno apoiado em corrimão
Retrato de Daniel Kahneman, vencedor do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas - Keith Meyers/The New York Times

Se você é como a maioria (80% das pessoas), sentirá um pendor pela segunda opção, a despeito do fato de que caixas de banco feministas são um subgrupo de caixas de banco.

Esta intuição é muito mais que uma consequência indesejável do seu antigo desânimo com a estatística, até porque a relação com a disciplina pouco afeta o resultado. Ela é reflexo dos impactos da realidade prática na modelagem dos nossos modos de pensamento durante os cerca de 300 mil anos de existência da nossa espécie.

Sempre que nos vemos frente ao desafio de inferir o perfil de alguém, procedemos como crianças mimadas classificando ovos de chocolate: aqui vão os ao leite, ali os brancos e, quanto aos amargos, que fiquem na sacola. O perfil de Bia lembra o de ativistas e feministas; é isso o que, de fato, importa para colocá-la aqui, ali ou na sacola dos chocolates amargos. Bia é uma representante, como tudo e todos. Vale para o que nos causa simpatia e para o contrário. Preconceito é consequência extrema deste modus operandi em situações de desequilíbrio social.

Após o divórcio, Paulo decidiu rachar as contas da casa com um colega do trabalho. O inquilino assiste diariamente ao programa do Datena, ao qual Paulo acaba exposto, já que a exibição coincide com a sua chegada em casa e a TV fica na sala. Seis meses após a mudança, ele estará:

1. Mais convicto de que o Brasil é pura barbárie; 2. Menos convicto; 3. Igualmente convicto.

Percebe como a intuição nos conduz à primeira opção? Nós entendemos que, ao pensar sobre o quanto a vida é cruel neste país, ele irá se lembrar das histórias do Datena e formar sua opinião.

Pela mesma razão, subestimamos as chances de morrermos de doenças arteriosclerótica ou de crianças morrerem afogadas em piscinas, enquanto superestimamos a de morrermos em uma queda de avião ou assassinados. Mortes menos performáticas sensibilizam menos, e este é um dos principais desafios da medicina preventiva. Adianta conhecer as estatísticas? Avalie e diga.

Imagine que você teve a maravilhosa ideia de investir seu tempo livre indo a um outlet. Chegando lá, você entra em uma loja de fachada imponente e nome afrancesado, que lhe parece vagamente familiar. Calças a R$ 3.000, blusas a R$ 1.500. Um par de sapatos atrai seu interesse. O preço: R$ 2.100. Mas, eis que você nota que a loja tem outra seção, onde fica a ponta de estoque. Ali você encontra um segundo par de sapatos, quase tão bonito quanto o anterior, de R$ 2.200 por R$ 660 (70% de desconto). Ele está caro ou barato?

Agora, considere que você entrou na mesma loja, mas, como é um outlet, as calças estavam em torno de R$ 1.000, as blusas em torno de R$ 500 e o primeiro par de sapatos de que você gostou saía por R$ 700. Em suma, a loja seguia voltada à classe alta, apenas estaria trabalhando com preços menos exorbitantes. Nessas circunstâncias, você consideraria o par de sapatos da ponta de estoque a R$ 660 caro ou barato? Eu sei a resposta.

A diferença de percepção ocorre porque criamos visões tácitas do contexto e nelas ancoramos nossos juízos. No primeiro caso, ocorre um ajuste perceptivo grande quando vamos do preço cheio ao valor promocional. No segundo, o ajuste é mínimo.

O resultado é que o mesmo par de sapatos, pelo mesmo preço, em lojas idênticas, situadas no mesmo complexo, ora é visto como roubada e ora como oportunidade, o que contrasta com a ideia de que saberíamos avaliar as coisas em si mesmas em função de seus atributos físicos (produto) e simbólicos (marca).

Daniel Kahneman e Amos Tversky descreveram essas três heurísticas ou "desvios da racionalidade" em 1974, em um artigo que já foi citado quase 50 mil vezes.

Dada a aplicação imediata à microeconomia, a linha de pensamento em que tacitamente passaram a trabalhar ficou conhecida como economia comportamental, uma disciplina que hoje serve de contraponto à ideia de que agimos como o "homo economicus", a representação esquemática do ser humano que entra nas equações desenvolvidas para modelar as tomadas de decisão, a qual pressupõe que damos tratamento lógico consistente aos nossos pensamentos econômicos e que sempre estamos dispostos a investir toda a nossa energia para decidir bem, duas falácias completas.

Na realidade, porém, existe uma esfera de sentidos mais ampla que esse ramo da microeconomia, comumente acusado pelos economistas mais tradicionais de não passar de uma coleção de curiosidades ou exceções que não fazem mais que confirmar a regra de que o melhor ponto de vista sobre o comportamento decisório humano é ser racional.

Daniel Kahneman é o grande gênio da ecologia do pensar. Alguns milhares de anos de produção filosófica e, em especial, alguns séculos de formalismo matemático aplicado ao comportamento humano levaram à instalação de certezas dogmáticas no âmago das representações dominantes sobre o funcionamento da mente, as manifestações da ética e a consistência do comportamento humano. Foi isso que o antigo professor de Stanford combateu e ajudou a derrotar.

Há 500 anos, descobrimos que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário; no século 20, que a racionalidade não é um a priori inabalável da mente humana, mas o inverso, que ela precisa ser conquistada e que isso tem seus limites.

Freud e Kahneman estão conectados muito fundamentalmente. O médico de Viena abriu os nossos olhos para as rupturas da racionalidade pelo desejo e seu rechaço, enquanto o psicólogo israelense fez o mesmo pela via da evolução por seleção natural e suas gambiarras.

Não é por acaso que a descoberta científica mais célebre de Kahneman e Tversky foi que dor e prazer possuem importância assimétrica nas tomadas de decisão, com a primeira valendo mais que o segundo, enquanto seu livro mais famoso descreve a mente como um sistema dinâmico bifásico, em que as coisas seriam primeiramente processadas de tacitamente para, então, serem submetidas a processos analíticos, em alusão à dicotomia inconsciente vs. consciente.

Parte importante da psicanálise desenvolvida após a morte de Freud diz respeito à função das ausências. O desejo é, em si, uma falta (daquilo que permitiria que fosse saciado), que caso a caso nos define.

Do ponto de vista filosófico, seria uma forma pessimista de ver a condição humana, não fosse o caso de ser simplesmente realista: ao demonstrar que as pessoas são mais sensíveis ao medo de perder ou sofrer que ao prazer de ganhar ou viver coisas incríveis, Kahneman e Tversky nos levaram da tese à comprovação.

O porquê é claro: você só é destroçado pelo inimigo feroz uma vez. Só uma vez, o frio te converte em um bloco de gelo. Infelizmente, só é possível morrer uma vez. Já o prazer é a chama que renasce todo dia. Não é por acaso que ninguém fica traumatizado de prazer. As áreas cerebrais de processamento de estímulos negativos são maiores, as tintas da dor e do medo, mais intensas, e a transmissão cultural do rechaço é muito mais forte que a da atração e da beleza.

É justamente porque somos animais bem-adaptados que avaliamos negativamente uma loteria na qual apostamos nossa única casa com 66% de chances de ganhar mais uma e 33% de perdê-la, a despeito do fato de que, se passarmos a vida jogando, perceberemos que, a cada três rodadas, ficamos uma casa mais ricos.

O que é matematicamente irracional faz pleno sentido em termos existenciais: a satisfação proporcionada por ter mais uma casa nem de longe é comparável à dor de perder o teto único. É isso que molda as nossas intuições, não as forças do além.

As consequências são profundas. As pessoas já ricas se tornam muito mais com o tempo, mesmo em sociedades menos desiguais, posto que se sentem mais confortáveis para apostar em "loterias" (negócios, especializações etc.) como essa acima. Troque "ricas" por qualquer predicado desejável e perceba a abrangência do princípio.

Porém, não é só. O que Kahneman e Tversky também mostram é que a reiteração do prazer vai nos tornando menos responsivos a ele. Após o primeiro show, o roqueiro está eufórico. Após o quinquagésimo, está apenas satisfeito. Agora, no polo da dor, as coisas são diferentes. O primeiro tombo dói demais, o quinquagésimo dói quase o mesmo. A consequência é que o medo de perder vai se tornando ainda mais relevante que o prazer projetado no ganhar, conforme as coisas vão dando certo.

É isso o que explica porque a taxa de psicopatia é alta entre os que constroem impérios: à medida que recompensas têm retorno marginal decrescente (cada uma reduz o valor da próxima), o tempo se encarrega de levar o indivíduo a intuir que o melhor a fazer é segurar firme o que se tem em vez de arriscar e correr o risco de sofrer.

Agora, quando esse sistema não funciona, como na psicopatia, que possui um componente neurofisiológico, a ambição se torna infinita e o acúmulo eventualmente segue junto —se o sujeito não terminar preso ou sofrer um AVC, é claro. Portanto, do ponto de vista da maximização utilitária contextualizada, a psicopatia é utilitária, algo que é amplamente reconhecido entre os lobos de Wall Street.

Já no polo da derrota, não é preciso ser um tipo muito distinto, em termos neurofisiológicos e comportamentais, para ir da perda do salário à do carro na mesa de apostas. Perder o salário dói demais; tentar recuperá-lo parece intuitivo. Entende o problema da legalização de cassinos e outras modalidades de jogos de azar?

O mesmo princípio revela por que fama, reputação e riqueza tendem a forjar tipos conservadores.

As pessoas se tornam mais ou menos abertas a experiências em face da dinâmica de recompensas vivenciada. Em cima disso, acomodam crenças e valores condizentes com o seu momento de vida e relacionamentos, o que irá fazer com que se enxerguem —e as enxerguemos— como mais liberais ou conservadoras.

O conservadorismo se fortalece pelo achatamento do valor do novo, visto como ameaça a um legado. Sendo isso verdade, segue que conservadores tendem a ser mais felizes que seus pares liberais. As pesquisas de fato corroboram essa perspectiva, que é conexa à de que têm mais chances de se tornarem chatos e tediosos, posto que fechados em si mesmos. "C'est la vie".

Paixões avassaladoras arrebatam audiências em filmes bancados por produtores cautelosos.

Daniel Kahneman não registrou em palavras todas as ideias aqui apresentadas. Porém, não se iluda, elas são decorrências inescapáveis de sua obra. Eis mais uma marca do seu gigantismo intelectual.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.